segunda-feira, 2 de setembro de 2013

RAÍZES DA CORRUPÇÃO

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– Para mais facilmente entendermos a corrupção endêmica que nos vitima,
lembremo-nos de que, no Brasil, ela teve suas raízes fortalecidas na
cultura do coronelismo, sua marca mais evidente, quando diferenças eram
resolvidas na marra ou à bala. Cito como exemplo o episódio de Alagoas,
aliás, de repercussão internacional, que pode ser considerado modelo dessa
cultura. Ocorreu em Maceió, em setembro de 1957, numa sexta feira 13,
quando a Assembleia Legislativa se reuniria para discussão e votação do impeachment
do Governador Sebastião Marinho Muniz Falcão. Ao invés, os
deputados se enfrentaram com revólveres e metralhadoras num clima de
pura violência e tumulto. Regimentalmente tudo estava preparado para a reunião,
mas não foi o que se deu. Já às nove horas da manhã, setenta e dois
sacos de areia cuidadosamente empilhados atrás da mesa da presidência, formavam
uma trincheira de aproximadamente um metro e meio de altura. Sob
um sol causticante e com temperatura ultrapassando os trinta e tantos graus,
chegaram homens vestidos de terno sobrepostos com capas amarelas de xantungue
escondendo as metralhadoras que portavam, bem como armas de
menor potencial de fogo e farta munição. Não havia dúvidas de que ali seria
travada, não uma discussão de leis e divergências de opinião, mas, sim, uma
sangrenta luta armada. A partir das quatorze horas, deputados começaram a
chegar, formando grupos. Pouco antes de ser iniciada a sessão, ouvem-se os
disparos iniciais. Daí em diante houve uma sucessão incontrolável de tiros,
numa fuzilaria que durou cerca de 40 minutos, sem interrupção, sendo disparados
perto de 1.200 projéteis no total, consoante noticiado em jornais de
então, com saldo de um deputado morto e outros feridos, além do jornalista
Márcio Moreira Alves e de um funcionário da casa. Para melhor entendimento
do caso, faz-se mister uma pincelada.
Uma das causas para o requerimento do impeachment foi a criação de
taxa sobre produtos básicos da produção estadual, logo após a posse de
Muniz como governador. A outra teria sido a violência que contaminou o

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estado depois dos assassinatos de um vereador e um deputado, ambos da
UDN, na mesma cidade de Arapiraca. Foi logo depois dessas mortes que
surgiu a ideia do impeachment, por iniciativa de Oséas Cardoso, ferrenho
adversário de Muniz e líder da oposição, sob alegação de irregularidades no
governo e falta de providências contra a situação de violência política no estado.
Concluindo este abreviado devo dizer que, quatro dias após o tiroteio,
com proteção do Exército e um rigoroso esquema de segurança, foi votado
o impeachment no Instituto de Educação, local improvisado para a sessão.
Em duas votações, Muniz Falcão foi afastado do governo de Alagoas. Quatro
meses depois, absolvido pela justiça, voltou ao governo no dia 25 de janeiro
de 1958, completando o mandato em 31 de janeiro de 1961. Faço questão
de ressaltar aqui trecho do que diz Natália Rangel, em artigo na revista
ISTOÉ, em 10 de março de 2011:
Um vergonhoso episódio da história política brasileira, emblemático
de uma cultura coronelista e violenta em que desavenças familiares
e partidárias se resolviam à bala, é agora retratado no livro “Curral da
Morte”, do escritor e cineasta Jorge Oliveira... O autor levou três décadas
para reunir as informações que agora revela e acredita que o País
trocou armas de sangue por corrupção: “Meio século depois, a brutalidade
das armas nas discussões políticas deu lugar à suavidade do diálogo
do dinheiro público fácil no bolso”.
– Li muito sobre este episódio, até mesmo por justificada curiosidade.
Eu, quando jovem, estudava no chamado curso clássico, no colégio Marconi.
Morava na pensão da Dalva, na Praça Raul Soares. Por interessante coincidência,
meu colega de quarto foi, por cinco ou seis meses, o João Cardoso,
uma espécie de foragido político de Alagoas aqui em Belo Horizonte, irmão
do Oséas, deputado mentor do impeachment, uma pessoa de coragem pessoal
que bem se poderia taxar de absurda. Faleceu em 2006 e, segundo o panegírico
post mortem que lhe fez o conterrâneo Renan Calheiros (na época
presidente do Senado): “Oséas era dotado de uma coragem suicida e de uma
enorme habilidade no manejo das armas, que se notabilizaria nas inúmeras
lutas travadas pela conquista do poder no estado. A imaginação popular coloriu
sua participação nesses conflitos com tonalidades de lenda. Na medida
em que exercia cargos de destaque, sua fama de valente espalhava-se pelo
País. Surgiram vários contestadores que se saíram sempre mal”.
Deputado estadual em três legislaturas, federal em duas, foi eleito e
reeleito com magníficas votações, e jamais perdeu sua imagem em Alagoas.
Nunca ousaram acusá-lo de subversivo ou de corrupto, até porque saiu

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pobre da política. Dedicando-se nos últimos anos de vida à iniciativa privada,
formou patrimônio que lhe permitiu viver sem dificuldades o resto
de seus dias. Morreu aos 95 anos. Dele vim a me tornar amigo após minha
reeleição como deputado federal em 78, ano em que ele chegou à Câmara
para exercício de seu primeiro mandato. Para aquilatar de sua coragem,
basta dizer que ele me mostrou no corpo, certa ocasião, cicatrizes de estimados
18 ferimentos por bala. Dedicou parte de seus últimos anos a escrever
livros de suas lembranças, enriquecidos pelas descrições das batalhas
políticas que viu e ajudou a enfrentar. Aliás, com dedicatória muito carinhosa,
tenho guardado na minha biblioteca o volume de suas memórias.
Então eu acompanhei isso muito de perto e, na época, até mandei uma carta
para o senador Arnon de Melo, contando que esse João Cardoso tinha tanto
pavor de ser assassinado aqui em Belo Horizonte que, quando ia sair da
casa, que por sinal tinha uma cerca viva na frente, olhava para os dois lados,
com a mão no revólver. Só após se certificar de que não havia ninguém a
observá-lo é que saía, porém não andava cinquenta metros sem olhar para
trás, como para ter certeza de não estar sendo vigiado ou seguido.
Quando escrevi ao senador, ele estava sendo julgado por assassinato.
No Senado, em presença flagrante de inúmeras autoridades, Arnon tinha
disparado três tiros em Silvestre Péricles (de Goes Monteiro), seu inimigo
político, mas errou e acertou em José Kairala, que morreu em seu último
dia de mandato como suplente. Desta forma, pensei ajudar o Arnon na própria
defesa. Ele poderia alegar que, se o irmão de seu amigo e correligionário
Oséas Cardoso, encoberto em Belo Horizonte, procedia daquele jeito,
por medo do alcance dos braços dos oponentes, imagine-se o medo que ele
mesmo teria do Silvestre de Goes Monteiro, inimigo declarado e direto, naquele
faroeste que era o estado de Alagoas na ocasião. O senador me respondeu,
muito atenciosamente, que havia juntado minha carta aos autos do
processo administrativo que foi instaurado no Senado. Posteriormente,
quando deputado federal, tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.
Era um homem interessantíssimo, jornalista, personalidade marcante, brilhante
enfim. Então me disse que tinha me arrolado como testemunha, mas
que seu advogado de defesa entendeu que as evidências eram tão grandes
e os fatos tão sobejamente comprovados, que se resolveu abrir mão de meu
depoimento, com justificado receio de que o braço longo do Goes Monteiro
chegasse a Minas, me alcançando. Eu era um jovem que teria naquela ocasião,
se tanto, dezoito anos de idade. Interessante ainda nessa saga dos Goes
Monteiro, é que aqui, em Belo Horizonte, um irmão do Silvestre Péricles,
fiscal da receita, constituiu família.

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Uma de suas filhas, me parece que Norma, foi minha cliente, num episódio
ligado à lei de imprensa ou à legislação eleitoral, e um dos filhos deste
irmão do Silvestre, casou-se com uma filha do professor Carlos Campos,
que morava na Rua São Paulo, perto da pensão da Dona Quininha. Fiquei
amigo do Carlos Campos e de todos os seus filhos depois de conhecer o Dr.
Álvaro Álvares da Silva Campos, primeiro advogado com quem trabalhei.
Márcio Moreira Alves, largamente conhecido como Marcito, começou,
aos 17 anos, a carreira como jornalista no “Correio da Manhã”, onde
teve seu primeiro emprego. Em setembro de 1957, com 21 anos, foi enviado
pelo jornal para cobrir a crise política no estado de Alagoas, onde a Assembleia
Legislativa deveria se reunir para decretar o impeachment do Governador
Muniz Falcão, por mais de uma acusação, como já esclarecido. No
tiroteio que se seguiu, Marcito foi ferido na coxa direita por um tiro de bala
perdida no recinto, disparada da metralhadora do deputado Claudenor Lima.
Ainda assim, por telegrama enviou a reportagem, num furo sensacional.
Esteve algum tempo hospitalizado e, no ano seguinte, ganhou o Prêmio
Esso de Reportagem, na época maior honraria do jornalismo, ficando nacionalmente
conhecido. Anos depois foi eleito deputado federal pelo antigo
estado da Guanabara, e dele me tornei muito amigo. Marcito era filho do
ex-prefeito de Petrópolis e secretário de finanças da Guanabara, Márcio de
Franco Melo Alves. Seu avô paterno, o Dr. Honorato Alves, deputado federal
por Minas Gerais de 1906 a 1929, foi sucedido na câmara pelo irmão,
o Dr. João José Alves, diamantinense radicado em Montes Claros, largamente
conhecido como marido de D. Tiburtina. A família de Márcio Alves
era proprietária do afamado Hotel Ambassador, onde funcionou o Juca’s
Bar, depois transformado, na década de 60, numa pequena instituição, ponto
de encontro de intelectuais e políticos. Muito frequentado por Marcito, teve
forte influência na sua formação política. Ali, sobretudo políticos do nordeste
tinham seu quartel general. Mas foi a mineirada que, após a eleição
de JK, ocupou o local, desbancando os nordestinos.
Tempos decorridos daquele tiroteio, o general Silvestre de Góes Monteiro,
que representava uma das facções em conflito, e o pai do ex-presidente
Collor, Arnon de Melo, que representava outra facção, se enfrentaram no
Senado praticamente da mesma maneira. O Arnon de Melo fez vários disparos
tentando atingir o general Silvestre de Goes e quem pagou o pato foi
o senador acreano José Kairala. O Acre fora, em junho de 1962, elevado à
categoria de estado por sanção, pelo Presidente João Goulart, de um projeto
de lei apresentado pelo então deputado José Guiomard dos Santos. Foi, lembro,
o primeiro estado brasileiro a ser governado por uma mulher, a profes-

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sora Iolanda Fleming, pelo exato período de um ano, de 15 de maio de 1986
a 15 de maio de 1987. Mas o nome Márcio Moreira Alves ficou notório sobretudo
pelo pronunciamento que fez no congresso nacional no início de
setembro de 1968, que culminou na edição do Ato Institucional nº 5. A fala,
sem maior importância, foi feita no Pinga Fogo da Câmara. Explico: logo
na abertura da sessão, os inscritos, em número limitado, tinham a palavra
por tempo parece que estipulado em um máximo de cinco minutos, para
comunicações de urgência. Era, não obstante, um horário muito disputado,
porque o noticiário saia com destaque na “Hora do Brasil” e envolvia, por
exemplo, uma denúncia qualquer de interesse do eleitorado, fosse qual fosse
o estado do deputado. Não era sequer um horário apropriado para apelos
do tipo do que o Marcito fez. Pois bem, apesar de o horário não ser adequado,
o discurso entrou para a história do Congresso nacional. Fadado a
não ter maior repercussão, despertou profunda ira dos militares da linha
mais dura, que o qualificaram como “ofensivo aos brios e à dignidade das
forças armadas”. Na fala, Marcito convocava boicote às paradas militares
de celebração da Semana da Pátria e solicitava às jovens brasileiras que não
namorassem cadetes.
A propósito do Marcito, quando de sua morte em 2009, Genival publicou
no Jornal de Notícias, de Montes Claros, uma interessante crônica,
a seguir transcrita:
Genival Tourinho – Montes Claros de ontem
“A propósito do breve noticiário do Jornal de Notícias sobre a morte
de Márcio Moreira Alves, descendente próximo de ilustre família montesclarense,
veio-me à memória pitoresco episódio ocorrido no final da terceira
década do século passado, envolvendo os engenheiros Márcio Melo Franco
Alves (pai do Marcito) e Joaquim José da Costa Júnior, hoje todos pranteados
por nós do setentrião mineiro. Os personagens (Joaquim e Márcio), colegas
de turma da Escola Politécnica de Engenharia do Rio de Janeiro,
embora se dessem muito bem, guardavam, ainda, restos das velhas divergências
provocadas pela política de então, comandadas pelo Dr. Honorato
Alves e pelo seu Camilinho Prates, respectivamente chefes dos ‘partidos
de cima e de baixo’. Seus colegas, sabedores dessas reminiscências, irreverentes
como quase todos os estudantes, viviam provocando os dois para
que revelassem algo que suas famílias não gostariam que fosse divulgado.
Numa palavra, queriam fofocas dos dois. E muito, hoje nada, encontraram.
Joaquim disse-lhes que perguntassem ao Márcio como se dera o casamento
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de D. Branca de Melo Franco com Honorato Alves, proibido que tinha sido
pelo Embaixador Afrânio de Melo Franco. Garridos, foram em grupo os
colegas fofoqueiros fazer a pergunta a Márcio, dele ouvindo que, efetivamente,
o embaixador, como irmão mais velho, não só pela sua posição,
como também pelo fato de ser o chefe da família, havia vetado o relacionamento
(eram mortos os pais e com sua família vivia a irmã Branca, a caçula)
o que levou Honorato a procurá-lo, dizendo-lhe que pretendia o namoro
com boa intenção, era médico realizado profissionalmente. Fora um dos
fundadores da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte (hoje UFMG), já
exercera dois mandatos de deputado federal, pertencia a uma família tradicional
de Montes Claros e outro que tais, terminando por perguntar qual a
razão do veto. Ouviu do embaixador que preferia não decliná-lo para não
constranger seu interlocutor, o qual insistia na resposta afirmando nenhum
receio de constrangimento. Já que é assim, foi-lhe respondido, o senhor tem
em Montes Claros um irmão médico, também, muito conceituado e querido,
com os atributos que reconheço serem de ambos, mas que lá vive amasiado
com uma viúva de Itamarandiba (D. Tiburtina) fato que minha família não
admite. Redarguiu-lhe Honorato: Isto é muito simples de resolver pois isso
é a intenção dele, ou seja, o casamento. Esta semana estou de saída para
Montes Claros, a viagem demora uma semana, (ao tempo, o final de linha
da Central do Brasil estava em Buenópolis, dali para a frente era a cavalo),
lá chegando, acelero este casamento e mais um mês aqui estarei de volta
com tudo resolvido. Retomou a palavra o embaixador, dizendo-lhe que se
tudo era tão simples, ele (Honorato) deveria aproveitar a oportunidade para
casar seu pai (Marciano Alves, vulgo Comboeiro), já que ele também não
era casado. Aí foi a vez de Marcos dizer aos colegas: perguntem ao Joaquim
porque o avô dele não se casou com sua avó. Pergunta feita, pronta resposta
interrogativa: casar como, se meu avô era o Cônego Chaves? E, no auge
das gargalhadas acadêmicas, ouviu-se o complemento feito por Joaquim: o
impedimento do meu avô era o mesmo do bisavô do Márcio, o também Cônego
Melo Franco. E tudo bem, entre mortos e feridos salvaram-se todos,
para os numerosos e ilustres ramos familiares que floresceram a partir do
Norte e Noroeste de Minas. Tudo o que aqui está relatado foi-me contado,
inicialmente, por Joaquim Costa, para, anos depois, ter integral confirmação
por parte de Marcito, com quem tive uma longa e prazerosa convivência
no Rio, Brasília, Belo Horizonte e em duas das vezes em que estive em
Paris, onde morava ele num castelo, casado que foi com uma nobre francesa.
Em doce e idílico exílio, como asseverava Darcy Ribeiro.
Belo Horizonte, 18 de abril de 2009.”

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