terça-feira, 3 de setembro de 2013

UMA PAUSA PARA DARCY E MÁRIO RIBEIRO

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Nome de projeção internacional, Darcy é grata e eterna lembrança
dos conterrâneos, que lhe preservam a memória, concomitantemente com
a do irmão Mário Ribeiro, menos esplendorosa e bem mais urbana, não
menos montes-clarense. A respeito, esclarece Genival:
– O fotógrafo oficial da Municipalidade ao tempo em que Marão
(Mário Ribeiro) era prefeito está prestes a editar um livro com inúmeras
fotografias do saudoso amigo alcaide acompanhado de Darcy Ribeiro e
outras pessoas, num verdadeiro estudo fotográfico dos dois irmãos. Alguns
amigos dos dois, dentre os quais minha pessoa, fomos convidados
a nos manifestar sobre o estudo, bem como sobre o título “Dois Irmãos”.
O que se lê a seguir é a crônica elaborada por mim a ser publicada em
breve no referido estudo em forma de livro.

DOIS IRMÃOS ANTÍPODAS

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Mário e Darcy, dois irmãos antípodas, por um desses mistérios da
natureza, se integravam num amor fraternal profundo. O primeiro, extremamente
apegado à família, também aos amigos que possuía às mancheias
e com prole numerosíssima, fincado no solo montes-clarense tão
profundamente quanto as aroeiras do Sítio Tira Teima. Para o primeiro,
o centro do universo era Montes Claros, numa relação de gravitação equivalente
à do sol e do planeta Terra. Despojado de qualquer dose de vaidade,
era arrojado, inventivo, empreendedor, partícipe de tudo o que
ocorria na sua cidade e de poucas ao redor, também por ele estimadas,
mas nunca como Montes Claros: Bocaiuva, Brasília de Minas, Janaúba,
Coração de Jesus (terra dos seus antepassados), Januária e Pirapora. Por
Belo Horizonte, onde estudou vários anos, teve presença marcante no
mundo estudantil (Mário Comunista), muito presente aos seus acontecimentos
políticos e aos ocorridos na Associação Médica, depois na Secretaria
de Estado do Trabalho e, durante bom tempo, do quarto andar
do Automóvel Clube (salão do pôquer). Tinha grande apego aos gerais
do norte, mais com sua rainha Montes Claros. Acima de tudo, no seu
amálgama de sentimentos, sobressaía-se a capacidade de não guardar
rancor, de tudo perdoar. Seus amigos íntimos e seus familiares bem sabemos
pelo que passou nos dias que se seguiram a 1º de abril de 1964.
Nenhuma reminiscência rancorosa, para tudo uma palavra de desculpa
ou explicação, era assim que agia. Já Darcy, explosão da mais intensa
intelectualidade, cidadão do mundo, autor do discurso de posse de Salvador
Allende, figura influentíssima junto ao General Alvarado (Peru),
cuja presença ia da Sorbonne (doutor “honoris causa”) aos índios brasileiros
e esquimós do Canadá, monoglota, pouco se importando com línguas
outras (“quem fala línguas é marinheiro ou porteiro de hotel”), dono
de obra vastíssima e diversificada. Montes Claros constituía mero acidente
em sua vida múltipla, só o lugar onde nasceu. Filho, nenhum. Ci-

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dadão do mundo, em termos de Brasil, o Rio de Janeiro era sua paixão.
Ficava fera ao ouvir crítica qualquer ao Rio. Recordo-me de um programa
de televisão em que seu interlocutor exagerava a violência da cidade,
ouvindo a fulminante réplica: “E São Paulo (terra do interlocutor)
que tem mais que isso, além de ser cercada por um rio de merda e
bosta?”. (referia-se ao Tietê). A imprensa nacional, embora carinhosamente,
criou o neologismo “darcisista” (misto de Darcy e narcisismo)
para qualificá-lo. Amigos em Montes Claros, uns poucos. A maioria meramente
histórica. Apegado, no entanto, talvez ao mais simples de todos,
por ele chamado de Zé do Catão (Prates), o popularíssimo, querido e
inesquecível Zé Paraíso, da minha infância, mocidade e maturidade.
Numa rápida frase Mário punha a claro o antipodismo existente
entre os dois: “os dias mais felizes de minha vida são os em que Darcy
chega e parte (de Montes Claros)”. Dois irmãos tão diferentes que se
completavam para honra e glória da minha Montes Claros.
Belo Horizonte, 09 de março de 2007.
Genival Tourinho.

O QUE POUCOS SABEM

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Na sessão de nove de março de 77, na iminência do processo de
estatização, Genival lembrou a ação alienígena nos bastidores do
golpe. Os mesmos interessados em reduzir nossa soberania articulavam
restringir a participação estatal na economia, dando nome de desestatização
a uma verdadeira desnacionalização. Mas, “o cognome
não mudou a semântica”, ensina judiciosamente. Lembrou haver requerido
à Câmara desarquivamento dos autos e do relatório da CPI
que investigara atividades do “Ibad”, “Ipes” e da “Ação Democrática”.
Criada em 63 a CPI, tivera Pedro Aleixo como relator. A ela cumpria
esclarecer a atuação de órgãos ligados às multinacionais e seu papel
no golpe de 64. Em dezembro, o resultado do inquérito foi aprovado.
Mostrava que a maioria dos diretores do “Ibad” e ‘Ipes” pressionara
grupos econômicos com o discurso de impedir o crescimento do comunismo
no Brasil. Captando-lhes simpatia e confiança, obtiveram
vultosas quantias que manuseavam sem prestação de contas. A CPI foi
posteriormente arquivada pelo governo militar.
Mais de vinte anos depois, Genival enfatiza:
– O Ibad foi um órgão que financiou pesadamente as eleições de
deputados fiéis aos interesses americanos. Em sua retaguarda existia um
tal de Hasslocher, uma figura meio mítica, nunca se conseguiu descobrir
na época quem era. Os bancos distribuíam dinheiro a mancheias para determinados
candidatos que se opunham a Jango, à reforma agrária, e muitos
deles estavam na Câmara quando requeri o desarquivamento. O
requerimento da CPI sobre o Ibad teve autoria do José Aparecido de Oliveira.
Foi aquele corre-corre, muita gente pedindo para eu desistir, inclusive
gente do nosso próprio partido, porque o partido era tido como
sendo financiado. Isso deu muito barulho, deu muita notícia na imprensa
na ocasião, mas no final das contas não foi possível o desarquivamento

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porque sumiram com toda a documentação. Aparecia apenas o requerimento
e seu encaminhamento para uma comissão da Câmara.
Foi o historiador e cientista político uruguaio René Armand Dreifuss,
naturalizado brasileiro, quem batizou de “Complexo Ibad/Ipes” o
esquema golpista patrocinado, dentre inúmeros interessados, também
pela CIA, a conhecida e temida “Central Intelligence Agency”. O complexo
nababescamente financiou algumas dezenas de candidatos direitistas
a postos eletivos na ocasião, uma fortuna havendo sido gasta. Há
até hoje uma controvérsia muito grande a respeito de seu fundador, o já
citado Hasslocher, e muita gente não sabe bem quem foi esse cidadão, o
homem que gerenciou os milhões de dólares fartamente despejados no
financiamento das campanhas apoiadas pelo complexo. O Instituto Brasileiro
de Ação Democrática, “Ibad”, foi uma escabrosa organização anticomunista
fundada em maio de 1959 pelo economista Ivan Hasslocher.
O objetivo era influenciar nos debates econômico/político/sociais do País
por meio da ação publicitária e política. Para apoio logístico, Hasslocher
usava uma empresa, a “Incrementadora de Vendas Promotion”. Ao lado
dele, vários empresários brasileiros e estadunidenses, com polpudas contribuições,
fariam parte dessa organização e de sua entidade irmã, o Instituto
de Pesquisas e Ações Sociais, “Ipes”, constituído dois anos e meio
depois, e cuja finalidade inicial era combater o estilo populista de JK e
possíveis vestígios da influência do comunismo no Brasil. Fundado em
dezembro de 1961 por Augusto Trajano de Azevedo Antunes (ligado à
Caemi) e Antônio Galotti (ligado à Light), o Ipes serviu como dos principais
catalisadores do pensamento antiGoulart. Encabeçando o rol de
doadores, ainda integrado por cerca de trezentas empresas de menor
porte, além de diversas entidades de classe, os cinco maiores financiadores
foram: Refinaria União, Cruzeiro do Sul, Light, Incomi e Listas
Telefônicas Brasileiras. O Ipes desapareceu em 1972, quando seus propósitos
pareciam ter sido cumpridos e o AI-5 parecia ter controlado todos
os focos de manifestação antidireita do País. Tinha estrutura idêntica à
de sua coirmã já citada.
No Ibad, Hasslocher recebia doações de quase uma centena de contribuintes
para combater Jango e formar células golpistas de militares,
trabalhadores e estudantes. A Ação Democrática Popular, Adep, subsidiária
do Ibad, centralizava contribuições. Segundo o ex-agente da CIA,
Philip Agee, os fundos provenientes de fontes estrangeiras foram utilizados
na campanha de oito candidatos a governador nos onze estados
onde houve eleições, e em apoio a quinze postulantes ao Senado, du-

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zentos e cinquenta à Câmara Federal e a mais de quinhentos às assembleias
legislativas. Multinacionais americanas ajudaram até com 5 milhões
de dólares – uma fortuna para a época, segundo calculou em 1977
o ex-embaixador do Brasil Lincoln Gordon. Hasslocher usava a já citada
“Promotion” para coordenar as ações financeiras e também fazer seu
pé-de-meia. O caso levou a uma CPI, aliás duas. A primeira fracassou
com a descoberta de que seu presidente e seu relator haviam sido financiados
pelo dinheiro de Hasslocher. Em 1963, deu numa segunda CPI,
presidida pelo então deputado Ulysses Guimarães. À primeira notícia
da investigação, Hasslocher mandou-se para o exterior. Em 1965, dois
anos após vir a público o escândalo em que se descobriu que arrecadara
quantias impressionantes, sumiu do mapa. Emigrou para Genebra, na
Suíça. Voltou cinco meses depois e exigiu depor como indiciado, descompromissado
de voto com a verdade. Dele se sabe que, até há poucos
anos, vivia folgadamente em Londres, dando-se ao luxo de fugir do inverno
europeu para sua casa no Texas, onde a temperatura é mais elevada.
Em entrevista concedida em 1998 à Folha de S.Paulo, o general
aposentado Hélio Ibiapina revelou que o Ibad possuía ligações com a
CIA e que ele fora encarregado pelo general Castelo Branco de confirmar
a veracidade da informação. O instituto acabou sendo extinto em dezembro
de 1963 por ordem judicial. Ibad e Ipes patrocinaram livros e ainda
financiaram, produziram e difundiram uma enorme quantidade de documentários
e programas de rádio e televisão, além de matérias nos jornais,
tudo com forte conteúdo anticomunista. As duas entidades contribuíram
decisivamente na oposição ao governo João Goulart, fato crucial para o
êxito do golpe militar de 64. Muitas das radionovelas, filmes de cinema
e programas de televisão da época tinham mensagens explícitas e implícitas
para absorção, pelos brasileiros, dos valores estadunidenses. Ademais,
toda a mídia corporativa brasileira se comprometeu com o projeto
golpista do complexo.
O José Aparecido de Oliveira, preocupado com o vasto noticiário e
provas evidentes levadas a ele pelo ex-governador de Pernambuco, Miguel
Arraes, requereu inquérito parlamentar sobre a matéria. Esse inquérito
parlamentar foi requerido ao Ulysses Guimarães, então presidente
da Câmara dos Deputados e foi designado relator o Dr. Pedro Aleixo, deputado.
Convocado como testemunha, Ivan Hasslocher recusou-se a
depor nessa condição. Ele não queria assinar o termo e pediu para ser
ouvido como indiciado. O relator, Pedro Aleixo, considerou que não

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havia como incluí-lo na condição de indiciado, citando o Código de Processo
Penal, até hoje em vigor, que prevê a figura da “testemunha informante”,
que não é obrigada a prestar compromisso de dizer a verdade.
Finalizando, o Ibad foi criado em 1959, mas só intensifica suas atividades
a partir de 1962, gerenciado diretamente pela CIA, que o abastecia
de forma generosa. O Ipes foi fundado em 1961, por empresários
do eixo Rio-S.Paulo. A partir do complexo Ipes/Ibad, surge a ADP (Associação
Democrática Parlamentar), grupo que atuava no congresso federal
e que tinha, entre seus membros, deputados, senadores da UDN
(praticamente todos dessa legenda), boa parte do PSD, e mesmo alguns
deputados do PTB. No âmbito estadual atuava a Adep (Associação Democrática
Estadual Parlamentar). Os membros da ADP e da Adep recebiam
fundos generosos do Ipes/Ibad. O complexo participou ativamente
das eleições de 1962, financiando políticos alinhados com suas propostas
ideológicas. Esses institutos estiveram diretamente envolvidos no golpe
de 64. Após o golpe, os arquivos do Ipes/Ibad foram fornecidos a Golbery
do Couto e Silva, e ajudariam a formar o acervo de informações do SNI.
Os fichários (cerca de três mil dossiês), com informações das principais
lideranças políticas, sindicais e empresariais do País foram absorvidos
pelo serviço, que seria uma agência de informações para o governo,
transmitindo-lhe fatos reais, eis que a verdade das coisas tem sido sempre
mascarada para os detentores do poder, o que lhes é muito agradável. Eu
já tive poder e sei muito bem disso. Tinha profundo nojo, asco verdadeiramente,
de quem me puxasse o saco. O Golbery fundou o SNI para ser
um órgão que levasse ao presidente a realidade, e o que dele pensava o
povo, quais as medidas que eram impopulares, por que eram impopulares,
e quais os interesses que estavam sendo contemplados. Não foi o
que aconteceu. Por isso que o Golbery, no final de vida, profundamente
frustrado, dizia para quem quisesse ouvir, e eu fui um dos que escutou,
de viva voz, a queixa sempre repetida: “eu quis fazer uma coisa muito
boa e terminei criando um monstro que acabou acolhedouro de dedosduros,
figuras da pior espécie da política nacional”. Quando não praticavam,
permitiam e até incentivavam a prática dos mais violentos
processos de repressão, tortura e tudo o que paralelamente se possa conceber.
Cumpre acrescentar que o complexo exportou seus conhecimentos
para os demais países da América Latina, e seus congêneres estiveram
presentes em golpes na Bolívia, Chile, Uruguai e Argentina. Hoje, registre-
se como curiosidade, a sigla Ibad designa o Instituto Brasileiro das
Assembleias de Deus. Pois bem, o inquérito a que acima aludi, após o

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golpe de 64 foi sumariamente arquivado, convenientemente escondendo
os nomes de deputados, senadores e mesmo governadores financiados
pelo Ibad/Ipes. Eu, em meu primeiro mandato, requeri o desarquivamento
disso. Foi um verdadeiro deus-nos-acuda, porque tinha um mundo
de gente que havia sido financiada por esses institutos, foi um corre-corre
tremendo, e no final das contas o meu pedido de abertura em peças do
inquérito foi também arquivado sumariamente. Quero sublinhar que a
campanha eleitoral de 62 foi marcada pela extrema radicalização e intervenção
direta do poder econômico – inclusive de empresas multinacionais,
de bancos estrangeiros e da própria embaixada dos Estados
Unidos, através da CIA.
A verdade é que a ditadura colocou uma pedra sobre o assunto, para
proteger parlamentares de sua base política, beneficiados pelo Ibad. Interferiu
inclusive ao ponto de o relatório elaborado pelo mais tarde vicepresidente
Pedro Aleixo ser arquivado independentemente de sua
apreciação pelo plenário da Câmara Federal.
A respeito, diz Fernando Coelho, no livro “DIREITA, VOLVER –
O Golpe de 1964 em Pernambuco”:
“Tendo sido a matéria constante do projeto de resolução nº 35/63
arquivada em 01.12.1969, sem que tivesse sido apreciada pelo plenário
da Câmara Federal (Diário do Congresso Nacional de 01.12.1969, pág.
751), em 09.03.1977, o deputado Genival Tourinho, do MDB de Minas
Gerais, requereu o seu desarquivamento, sendo o pedido indeferido (Diário
do Congresso Nacional de 01.07.1977). Exercendo então o mandato
de deputado federal pelo MDB de Pernambuco, depois de constatar a
proibição de acesso à documentação da CPI, vedada a sua consulta até
aos parlamentares, requeri à mesa da Câmara a publicação do inquérito,
com todos os seus elementos, para conhecimento dos deputados e demais
interessados, a exemplo do que é feito com todas as CPIs. O requerimento
foi indeferido no dia imediato, através de despacho do então presidente
da Câmara, deputado Marco Maciel, comunicado ao autor pelo
ofício GP/071968/77”.

NORTE DE MINAS - A MENINA DOS OLHOS DE GENIVAL

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O ano de 77 foi perverso para a região mineira do polígono das
secas, assolada por duas grandes estiagens. Nada menos que quarenta e
dois municípios tiveram todas as pastagens calcinadas. Genival lembrou
que o governo, com o Pronor, prometia, além da prorrogação de débitos
de pecuaristas, crédito para renovação de pastagens. Uma esperança para
a população atingida. Não passou de outro programa frustrado “deste governo
sob o qual temos a desdita de viver”. A muito duras penas, a Federação
dos Trabalhadores do Campo e a organização que congregava
os fazendeiros conseguiram revigorar o Pronor, mas apenas e tão somente
para prorrogação de débitos. A afirmação do Ministro da Agricultura
Alysson Paulinelli de que o crédito rural, dependendo de medidas complementares
estava implantado, apenas adiava quebra coletiva. Genival
apelou, pois, às autoridades competentes para que restabelecessem cabalmente
o Pronor, que ainda, e por cima, impunha novas restrições, severamente
condenadas, à política de crédito rural.
– (...) Depois do desempenho extraordinário da agricultura brasileira
no ano passado, parece que exatamente como castigo, começou-se a política
de restrição creditícia. Os agricultores da minha região vivem completamente
apavorados. Depois de dois anos de seca inclemente, a classe
empresarial rural do Norte de Minas Gerais conseguiu, num esforço inaudito,
recuperar suas pastagens, e as recuperou para nada, porque todo o
rebanho daquela região desapareceu, dizimado pela seca ou vendido por
motivo do aperto financeiro dos fazendeiros. E não houve qualquer possibilidade
de reposição desse rebanho. (...) É necessário incentivar esse
homem glorioso, que luta, derruba florestas, planta, amaina a terra com
suas mãos, regando-a com o suor de seu rosto e que, em consequência,
ouve sandices imensas, sem qualquer sentido, como as proferidas ontem
pelo sr. Ministro da Agricultura. Mais uma vez lamento que o sr. Ministro

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Alysson Paulinelli não tenha tido o vigor da gente das Minas Gerais para,
já que não pode fazer nada, anunciar que o Ministério da Agricultura
nada resolve e que se, de uma hora para outra for extinto, nenhum produtor
rural deste País sentirá sua falta.
(DCN, 01/jun/78, pág. 4420).
Mesmo na Câmara, Genival mantinha sob constante observação sua
“menina dos olhos”, o Norte de Minas. De visão abrangente para os problemas
nacionais, tinha olhos de lince para as mazelas de sua região.
Sempre vigilante, denunciou a não liberação dos recursos do Finor
(Fundo de Investimento do Nordeste), com consequente desemprego na
região.
(DCN, 26/nov/77, pág. 12176).
Alertou, de outra feita, para o desvio – por manipulação de interesses
políticos dos prefeitos – de recursos públicos federais destinados aos
flagelados do Vale do São Francisco. Na ocasião, o Ministro do Interior
Mário Andreazza foi à Casa para discutir problemas da seca do Nordeste
e as soluções propostas.
– Interpelei Mário Andreazza naquela reunião da Comissão do Polígono
das Secas sobre a discriminação da área poligonal mineira já que,
por definição legal, os então quarenta e dois municípios do Norte de
Minas eram considerados Nordeste. Ele ficou meio atrapalhado, porque
houve realmente uma segregação de Minas Gerais, fato que, aliás, sempre
ocorreu durante a existência da Sudene. O Norte de Minas, para conseguir
alguma coisa, tinha que ser no berro, tinha que ser no grito. Se o
professor Darcy Bessone, montes-clarense ilustre, não tivesse usado o
prestígio que tinha junto ao Magalhães Pinto para, num trabalho de alta
envergadura logo após o golpe, levar a agência da Sudene para Montes
Claros, eu não sei se algum projeto da Sudene teria sido aprovado. Porque
a Sudene, logo nos primeiros tempos, discriminava abertamente o
Norte de Minas e eu interpelei o Andreazza exatamente por causa dessa
discriminação que ele praticava, autorizando frentes de trabalho, benefícios,
abertura de poços artesianos e outras obras, apenas para o Nordeste
propriamente dito, conhecido como tal geograficamente, e não para o
Nordeste legal, que incluía os quarenta e dois municípios do Norte mineiro.
Os nordestinos nunca acataram a inclusão da área mineira no polígono
das secas na Sudene. Foram obrigados a aceitar, porque na ocasião
era Presidente da República Juscelino Kubitschek. Eles sempre tentaram

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marginalizar nossa região. Os governadores nordestinos se reuniam no
Restaurante Leite, no Recife, e ali também se reunia o conselho da Sudene,
que era composto por eles, os governadores, e meia dúzia de burocratas.
Os burocratas faziam o que os governadores decidiam. Lá, eles
dividiam o bolo sempre com prejuízo de Minas, o que começou a terminar
com a instalação de escritório da Sudene em nosso estado. Depois
disso eu, como deputado, ainda sentia a hostilidade dos nordestinos com
relação aos interesses da área mineira da Sudene.
Relatou, na Comissão do Vale do São Francisco, a preocupação dos
lavradores quanto à construção de barragem na confluência dos rios Paracatu
e Sono e ainda reivindicou a vitalização do DNOCS, em sua opinião,
o órgão público que mais sensibilizara o Norte de Minas.
(DCN, 01/mai/81, págs. 28989/99).
Não deixou, nessa oportunidade, de se referir ao grave problema
dos posseiros do Vale do Jaíba, que se poderia tornar um vulcão social,
não fosse rapidamente equacionado. Lembrou que em 62, o então Governador
Magalhães Pinto, por decreto, e apoiado no art. 171 da Constituição,
determinara que todos os que quisessem trabalhar na terra, mas
não a tivessem, ocupassem a montante do Rio Verde até a margem do
São Francisco. Eram milhares de hectares de terras devolutas. Centenas
de posseiros se deslocaram para lá, fixando-se e começando a trabalhar.
Por manobras, de repente se viram expulsos, ficando a Ruralminas de
posse de todas as terras devolutas.
– Aconteceu, mais uma vez, aquilo que a história do mundo vem
reproduzindo, ou seja, exatamente, a hegemonia dos poderosos: os posseiros
saíram, a terras foram legitimadas em nome de grandes fazendeiros.
Abusos e tropelias foram cometidos contra homens que lá
trabalhavam e de nada valeu o decreto do governador.
(DCN, 20/ago/81, págs. 80533/55).
No início de 78, Genival solicitou a criação de uma CPI na Sudene,
para averiguar aplicação dos incentivos fiscais. Após alguns meses e uns
tantos percalços, a comissão foi finalmente instalada. Na sessão de quatro
de dezembro Genival, como relator, apresentou as principais conclusões:
obrigação de as estatais aumentarem investimentos no Nordeste e vinculação
à lei para liberação de recursos originados de incentivos fiscais.
Outras importantes recomendações foram feitas ainda. Além disso, mos-

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trou o parecer da CPI que aprovava o relatório e as conclusões do relator
adotando o projeto de resolução oferecido, acrescentando sugestões do
deputado Passos Porto.
Finalizou:
– Creiam-me, srs. deputados, que o melhor de nossos esforços, que
o mais vivo idealismo da Comissão Parlamentar de Inquérito, através
dos membros que a compuseram, foi jogado neste trabalho que, imploro,
não seja relegado a um dos escaninhos dos vários ministérios, nem a escaninhos
do executivo, que tudo pode, enquanto esta Casa, na realidade,
nada pode, senão perquirir, senão sugerir, senão investigar e, mais ainda,
trabalhar com bom senso, a bem de nossa gente, do povo que nos elegeu,
do povo que nos mandou para esta casa, na pretensão de que possamos
bem representá-lo. (Muito bem!)
(DCN, 06/jun/79, págs. 5216-5221).
A respeito relembra às entrevistadoras:
– Requeri uma CPI para verificar o funcionamento da Sudene. A
imprensa de Pernambuco começou a me descer o malho, como se nós,
sulistas – eles chamam de sulistas os brasileiros da Bahia para baixo –,
mais uma vez quiséssemos investir contra a Sudene. Pelo contrário, eu
queria abrir a Sudene, já que minha região era beneficiada por ela. Mas
o que eu sentia, era que os benefícios da Sudene não eram muito bem
direcionados. Muitas vezes, determinado empresário que precisava realmente,
não era contemplado. Quis evitar que essas anomalias acontecessem.
Queria, por exemplo, que fosse aprovado, sem ser submetido ao
autoritarismo de então, um projeto bem direcionado, que dava emprego,
benefício social, rentabilidade, e também tivesse os recursos demandados.
E a imprensa pernambucana achava que eu queria acabar com a Sudene.
Depois, quando começou a perceber qual era o meu
posicionamento, ganhei editoriais e mais editoriais do Diário de Pernambuco
elogiando minha atitude. Primeiro, me picharam violentamente.
Depois, quando saí com meu relatório, uma radiografia inteira da Sudene
com seus defeitos e como poderia se aperfeiçoar, passaram aos elogios.
Naquela ocasião a Sudene liberava os recursos e ia atrás dos captadores.
Era dado deságio de 40 a 45% para que a pessoa fosse aplicar seu dinheiro
naquele projeto que fosse de seu interesse. Quando veio o “Finor”
isso acabou. Então, ressalto, uma das primeiras vezes em que se falou
no “Finor”, como um modo de evitar essa comercialização, como evitar
o deságio acentuado na aquisição de ações de empresas aprovadas pela

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Sudene, foi exatamente nesse relatório. Ouvimos presidentes e ex-presidentes
da Sudene. Tentei o Celso Furtado. Era um ato meio audacioso
chamá-lo, um nome maldito, mas eu o convidei para a CPI. Declinou do
convite, dizendo que talvez sua presença até provocasse fatos que inutilizariam
o propósito que eu tinha. Lembro-me, por exemplo, de que uma
vez, na Comissão de Educação e Cultura, sugeri levar o Darcy Ribeiro,
que tinha voltado do exílio da primeira vez. As pessoas tapavam os ouvidos,
botavam a mão na cabeça, como se aquilo fosse uma loucura, o
diabo, que eu estava fazendo blague. Eu dizia: estou falando sério. Já
que vocês estão preocupados falando mesmo em ressuscitar aquele pernambucano,
Paulo Freire, se para ele não tem condição, o Darcy Ribeiro
está aí, por que não chamá-lo? Foi um pânico completo na comissão.
Depois o presidente mandou cortar toda e qualquer alusão ao nome
e à sugestão que fiz. A CPI ajudou muito a mudar o sistema de captação
de recursos, em que o que ia tomar dinheiro, vender ações para a empresa,
muitas vezes trabalhava com deságio de 40, 50% para vender suas
ações. Estavam todos descapitalizados. Essa CPI levou à conclusão de
que a Sudene teria que reformar seu modelo financeiro e em função dela
e de outros fatores é que se estabeleceu o “Finor”, que era outra forma
de financiamento. Entre outras, uma das coisas que o Finor adotou, como
meio de captação de recursos, foi o leilão.
Incansável na luta pelo desenvolvimento do Norte de Minas, pediu
certa vez a palavra para transmitir as graves denúncias feitas por José
Raimundo Gitirana, vereador e líder do MDB em Pirapora, contra a administração
local. A cidade era então o segundo polo industrial da região,
rivalizava com Montes Claros no processo de captação de recursos da
Sudene. As denúncias, em parte publicadas no Jornal de Minas, iam
desde a dilapidação do patrimônio público da cidade até o ambiente de
absoluta intimidação imposto à população pelo chefe de gabinete do prefeito.
Genival veementemente apelou ao Ministério da Justiça para que
tomasse providências em relação àqueles sérios problemas que atormentavam
o município.
(DCN, 03/jun/78, págs. 4514/15).
De outra feita, expôs na tribuna irregularidades na aplicação de recursos
para financiamento de pequenas e médias empresas nas áreas da
Sudene e da Sudam. O Plano de Ações Conjuntas – PAC – e o Financiamento
de Acionistas – Finac –, criados pelo BNDE, afirmou, foram de

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tal forma manipulados pelos bancos de investimento, que as pequenas e
médias empresas deixaram de ser beneficiadas. Em decorrência, acrescentou,
dava entrada a requerimento de informações sobre o emprego de
recursos do PAC 78/41. Pretendia, em razão disso, trazer o presidente do
BNDE para explicações.
(DCN, 09/nov /79, pág. 12799).
Quando a Sudene completou vinte anos, em sessão a que compareceram
o superintendente do órgão e outras autoridades, Genival, em discurso
como de hábito improvisado, prestou homenagem a JK, lembrando
que a entidade fora criada em seu governo, quando então se cristalizaram
“o sonho e as esperanças de milhares de brasileiros que se vinham batendo
em favor de providências tendentes a desconcentrar o progresso
da nação, fazendo com que o desenvolvimento atingisse o Nordeste para
beneficiar sua enorme população”. Ao ensejo apresentou profunda e detalhada
análise da atuação da Sudene ao longo dos anos, relacionando os
objetivos propostos e os resultados alcançados. Enumerou igualmente os
principais aspectos positivos da sua política, salientados pela CPI que
lhe examinou a atuação. Não deixou, uma vez mais, de discordar do regime
vigente no País. Completou:
–A Sudene, em seus vinte anos de atuação, fez muito pelo progresso
do Nordeste, e teria feito mais, se melhores condições de trabalho lhe
houvessem sido conferidas. Seu ideário, assim como o de cada um dos
eminentes homens públicos que a dirigiram, permanece válido após todos
esses anos, mas ocorreram, ao longo do tempo, modificações conjunturais
e políticas que acabaram por descaracterizar algumas de suas principais
atribuições, eliminando aos poucos a centralização necessária ao
correto desempenho de suas funções.
Cinco tópicos foram citados como contrários aos interesses da região
nordeste, o principal a transferência de recursos para o centro-sul
por meio do mercado de capitais. Num episódio isolado, uma infeliz declaração
de Wilson Braga, governador da Paraíba, chamando Minas Gerais
de “gigolô da economia brasileira”, profundamente indignou os
parlamentares, em particular a Genival, gerando veemente protesto.
– Realmente, o sr. Wilson Braga não faz honra ao estado da Paraíba.
Pretender desenvolver aquele clima de hostilidade a Minas Gerais no
conselho da Sudene, é na realidade malhar em ferro frio. Já houve tempo,
presidente, em que o “clube” dos governadores, reunido no Restaurante

302
Leite, no Recife, mantinha para com todos uma nítida prevenção em relação
à nossa participação no conselho da Sudene. Mas logo entenderam,
não só pelo fato de a Sudene ter sido criada pelo inesquecível Presidente
Juscelino Kubitschek de Oliveira, como também em homenagem às condições
de terreno, de clima, e à paisagem do Norte de Minas, que é tipicamente
nordestina, que nós realmente tínhamos o direito de nos
beneficiar dos recursos da Sudene. E agora agride o meu estado apenas
porque Tancredo Neves disse que o PDS é um partido nordestino. E o é
efetivamente, sem que isso signifique qualquer tipo de agressão ao Nordeste.
Porque, se perdemos a política no Rio Grande do Sul não foi em
função do PDS, mas em decorrência da nossa incompetência, da incompetência
das oposições em não aceitar o esquema do governo, partir para
uma vitória maciça com apenas um candidato das oposições.
Em decorrência, prometeu lutar para retirar Wilson Braga do Conselho
Deliberativo da Sudene, vergastando o governador paraibano por
empregar sua esposa no estado. Após, encerrou, em seu melhor estilo:
– Peço apenas que se respeite o meu estado, as lições de segurança,
de prudência e desenvolvimento que Minas Gerais, um estado mediterrâneo,
sempre deu ao Brasil inteiro. Que respeite os laços de profunda
ligação que, desde a revolução de 1930, o meu estado mantém com o pequenino
e glorioso estado da Paraíba que merecia, sim, ser governado
por um moço de autoridade moral, cultura e discernimento de Antônio
Mariz, e não pelo trêfego e inconsequente atual governador.
(DCN, 25/nov/82, pág. 8912).
Hoje comenta apenas:
– Quando eu era relator da Sudene, já apontava mazelas que recentemente
voltaram à tona e que levaram à extinção da Sudam e da mesma
Sudene. Meu relatório, contendo várias sugestões, foi aprovado pelo plenário.
Cerca de vinte deputados compunham a CPI, e as conclusões
foram encaminhadas ao Ministério do Desenvolvimento.

A SONHADA REFORMA AGRÁRIA

303
– Eu, desde criança, já ouvia falar na necessidade de uma reforma
agrária. Hoje, estupefato, assombrado pelo vulto que a coisa tomou, constato
que essa reforma ainda não se viabilizou e ameaça transformar-se
em um problema tenebroso, caso se confirmem os desdobramentos que
vem tendo. O quebra-cabeça fundiário do Brasil – do qual decorre o dilema
da reforma agrária – remonta a 1530, com a criação das capitanias
hereditárias e do sistema de sesmarias, que eram grandes glebas distribuídas
pela Coroa Portuguesa a quem, pagando com um sexto da produção,
se dispusesse cultivá-las. Aí nascia o latifúndio. Em 1822, com a
Independência, agravou-se o quadro: a ocupação, a tomada e posse de
terras, com a consequente troca de donos, passaram a ser feitas sob a lei
do mais forte, em meio a grande violência. Como na lavoura praticamente
só havia escravos, os conflitos unicamente envolviam proprietários
e grileiros apoiados por bandos armados. Mais gritantemente, a partir
de 1850, quando acabou o tráfico de escravos, o problema agrário se escancarou.
O império, sob pressão dos fazendeiros, resolveu mudar o regime
de propriedade. Até então, ocupava-se a terra à força e se pedia ao
imperador um título de posse. Dali em diante, com a ameaça de os escravos,
pela ocupação, virarem proprietários rurais, o regime passou a
ser o da compra, não mais o da posse. Só nove anos depois, em 1859, o
império tentou colocar ordem no campo, editando a Lei das Terras, com
um de seus dispositivos proibindo a ocupação de terras públicas, tornando
ilegais as posses de pequenos produtores. Foi além, determinando
que a aquisição de glebas só se faria com pagamento em dinheiro, o que
reforçou o poder dos latifundiários. A instauração da república em 1889,
um ano e meio após a libertação dos escravos, tampouco ajudou a melhorar
o processo de distribuição de terras. Mas o poder político continuou
nas mãos dos latifundiários, os temidos “coronéis” do interior. Na
época, os EEUU também discutiam a propriedade da terra. Só que, lá,

304
fizeram exatamente o contrário do que aqui se fez. Em vez de impedir o
acesso à terra, abriram o oeste do país a quem e para quem quisesse
ocupá-lo – só ficavam excluídos os senhores de escravos do sul. Criouse
com isso uma potência agrícola fundada numa sociedade de milhões
de proprietários, num mercado consumidor incomensuravelmente maior.
De quebra, numa cultura mais democrática. No Brasil, as desigualdades
no campo estão entre as maiores do mundo. Até a década passada, 1%
dos fazendeiros detinham metade das terras. Pouco mais de três milhões
e cem mil produtores rurais tinham menos de 3%. Atualmente, de um
lado, estão os movimentos de luta por terra; do outro, os produtores rurais
que não querem abrir mão de suas terras. Entre os dois, o governo. Quero
deixar claro que a questão de posse da terra sempre foi uma constante
no meu pensamento político-social. Entendo que a propriedade da terra
deve ser de quem nela trabalha. É conceito do “pedis ponere”, que legitima
a posse exatamente como o elemento mais importante no contexto
da propriedade. O que justifica tal conceito é a posse. A propriedade é a
posse, quem põe o pé é o posseiro, fica dono. A posse deve ser de quem
trabalha, é que tem importância mais relevante no contexto. O trabalhador
tem a posse, embora o proprietário tenha a escritura, o documento
público de compra e venda. Há proprietários que, com vigor, tornando
as terras produtivas, não devem ser incomodados. Exercem o bom exercício
da propriedade por meio da posse. Vale repetir, nos Estados Unidos
tais reformas se realizaram na segunda metade do século XIX, como
vemos consagrado nos faroestes, naquelas famosas corridas em que as
carroças chegavam, os pioneiros cravavam na terra um marco, e não sei
quantos acres em volta passavam a pertencer àquele que tinha feito a
ocupação. Já aqui no Brasil, até hoje se fala em reforma agrária, sem que
ela realmente tenha sido praticada e resolvida. Enquanto as cidades vão
se agigantando, o interior vai se apequenando, e está chegando um belo
dia em que não sei o que poderá acontecer. Já como deputado estadual,
tal estado de coisas me levou a pôr de lado as desavenças com o então
Governador Israel Pinheiro, e solicitar audiência para relatar aquele
drama. Doía-me profundamente verificar o que sofriam os posseiros das
terras abandonadas pelo grupo Matarazzo, no município de Bocaiuva,
distrito de Engenheiro Dolabela. Algo de realmente sério poderia acontecer.
Os camponeses estavam tão desesperados, que eu vira mulheres
incitando maridos a invadir propriedades privadas. Consequência de
vasta série de fatores, uma reforma agrária claramente se impunha. A politização
do caipira crescia a olhos vistos, levando a conflitos, cada vez

305
mais frequentes e intensos, ora entre o proprietário de terra e o posseiro,
às vezes entre o proprietário e o meeiro, já entre o proprietário e o morador.
Como não obtive resposta, o pedido foi intermediado pelo deputado
Bonifácio Andrada, o “Andradinha”, e a audiência conseguida. O
governador me recebeu, sem entretanto se mostrar suficientemente motivado
pela questão dos posseiros daquela região. Parecia haver, de sua
parte, um certo receio, que figurava até ter algum fundamento. É que o
Banco Denasa, do qual Juscelino era na época presidente de honra, teria
feito uma proposta para adquirir aquelas terras do Grupo Matarazzo, e o
Dr. Israel não queria muita mexida com aquilo. O nome do ex-presidente,
naquela ocasião, ainda incomodava muito, e o governador estava numa
verdadeira sinuca de bico, entre a cruz e a espada, uma situação extremamente
difícil, porque a Polícia Militar de Minas Gerais não aceitava
ser comandada por membros do Exército. Na realidade, e esta é minha
visão, as polícias militares nunca aceitaram essa história de serem comandadas
por oficiais do Exército. Parece-me até que, na ocasião, a brigada
gaúcha acedeu, mas a mineira nunca acatou isso.
Quando o retrato de Juscelino foi retirado de todas as repartições
públicas de Minas, não o foi da sala do comando geral da PMMG, o que
irritou profundamente o pessoal das forças armadas. Então, na medida
em que houvesse maior aproximação entre o ex-presidente e o Dr. Israel
Pinheiro, aquilo acirraria o ódio dos militares contra este. Um fato entretanto,
faço questão de ressaltar. No trato dessa questão, não posso deixar
de lembrar um posicionamento que me intrigou e me causou mesmo
estupefação, sobretudo pela grandeza que teve, e que me foi altamente
gratificante. O Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, que eu acreditava
fosse um “gorila” (como eram popularmente chamados os militares
que tomavam o poder por golpe ou defendiam sua prática), mostrou sensibilidade
social bastante para resolver o problema das Indústrias Malvina,
inclusive apoiando integralmente o relatório feito por autoridades
policiais que diziam que os Matarazzo, mormente eles, é que eram responsáveis
por aquele estado de coisas.
A propósito dessa questão de terras no Brasil, principalmente na
Amazônia Brasileira, é bom que se ressalte o acerto e a dignidade do general
Augusto Heleno, comandante das forças militares no Norte do País.
Fiel à tradição nacionalista do Exército Brasileiro, ele tem mostrado o
perigo da situação que estamos vivendo, com o questionamento atualíssimo
da soberania nacional em relação àquela área do nosso território.

306
Ora, ouvi dizer, já até mesmo li comentários em jornais e revistas, que
há muitos indígenas brasileiros que falam inglês mas não falam português.
Entendo isso de uma gravidade extraordinária, exacerbada com
esse negócio nebuloso das ONGs que lá proliferam, formadas majoritariamente
de americanos, ingleses e alemães, além de interessados menores.
Com efeito, na Amazônia se misturam inúmeras ONGs. Delas,
estima-se que existam ali operando cerca de cem mil, havendo denúncias
de que algumas se envolvem com tráfico de drogas e lavagem de dinheiro.
Ali, raras organizações internacionais de mérito reconhecido em
defesa da ecologia e dos direitos humanos se misturam com inúmeras
entidades inidôneas. Estas, com finalidade mais que incerta e até oculta,
certamente atrás das riquezas e da biodiversidade, de olho nas incomensuráveis
riquezas da região, em cujos rios estão 21% da água doce vital
ao homem. A ONU, aliás, avalia que o século XXI será marcado por graves
conflitos entre as nações, com origem em uma única causa, a escassez
de água potável. No momento constata-se o crescimento do interesse estrangeiro
pelas terras brasileiras, devido à estabilidade econômica do País
e à necessidade mundial de alimentos e biocombustíveis. Tão forte é o
questionamento internacional quanto à soberania brasileira na Amazônia,
que um jornal inglês, The Independent, chegou ao ponto de publicar:
“Uma coisa está clara. Essa parte do Brasil é muito importante para ser
deixada com os brasileiros”.
De se ver que, conforme mapeamento recém-concluído pelo Incra
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), 14% da Amazônia,
que equivalem aos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná
somados ou ao dobro do tamanho da Alemanha, são “de ninguém”. São
710,2 mil km2 de terras públicas, mas o órgão não sabe dizer se elas
estão nas mãos de posseiros ou de grileiros, não sabe o que está sendo
produzido ou destruído naquele patrimônio. Mais: após dez anos de esforços
para cadastrar as propriedades privadas da região, as terras que tiveram
seus papéis validados pelo Incra somam apenas 4% da Amazônia.
Em outras palavras, o estado brasileiro simplesmente ignora o que se
passa em terras da Amazônia. Os naturalistas von Humboldt, alemão, e
Goujoud Bonpland, francês, denominaram Hileia Amazônica àquela região,
ao mesmo tempo criando a ideia de uma total diferenciação com o
resto do mundo. No momento, em países como a França, por exemplo,
muito se questiona a volta da tal Hileia. Recentemente, entrou na discussão
um projeto reconhecendo aquela área como de resguardo internacional.
Ora, como bem ressaltou o ex-presidente Itamar Franco, tudo isso

307
faz lembrar aquela tentativa de desnacionalização, duramente combatida
por Arthur Bernardes com seu espírito acentuadamente nacionalista, e
de tal maneira que sepultamos a ideia no nascedouro.
Genival volta a suas considerações:
– Parece que querem agora tentar sua reedição, felizmente combatida
com tenacidade por nacionalistas, dentre os quais o citado ex-presidente.
É bom que eu diga isso também porque, além de nacionalista, sou
tido como antimilitarista, o que nunca fui. Sempre respeitei as funções
do Exército Brasileiro, de nossas forças armadas, principalmente por
causa do nacionalismo, do qual elas sempre foram o porta-voz mais eloquente.
Sempre citei aliás, nas gravações que faço para este livro e nas
conversas que tenho com aqueles que ajudaram a fazê-lo, o posicionamento
notável do general Heleno, defensor intransigente do monopólio
estatal do petróleo, como também a postura do Clube Militar. Então, o
que eu sempre combati, foram os militares fascistas, autoritários, os que
deram o golpe militar de primeiro de abril, aqueles que trouxeram a tortura
e o autoritarismo que chamo de vertical, como se fosse possível um
dominó a prumo, em que o que está por cima bate no cocuruto do que
lhe está por baixo, e assim por diante. O general começa no coronel, que
vai em frente, até que a última porrada chegue no soldado. Não tendo
mais em quem bater, o soldado bate em todos nós, como aconteceu nesse
Brasil durante vinte e um anos, com essa vergonhosa ditadura. Isso eu
combati. Daí repetir, com Oswald Andrade, que prefiro “baioneta calada
a baioneta falada”. Mas deixo claro que sempre respeitei as forças armadas,
principalmente pelo seu claro espírito nacionalista, visto por muita
gente como obsoleto, como se fora possível ser antiquado o regime de
amor à pátria. E nacionalismo nada mais é do que amor à pátria, como
recentemente demonstrado pelo general Heleno, comandante da guarnição
militar da Amazônia.

GOVERNADORES/INTERVENTORES MINEIROS PÓS-REVOLUÇÃO

Governadores/interventores

mineiros pós-revolução

308
Quando me recebeu em audiência, o Dr. Israel Pinheiro vivia numa
verdadeira corda bamba. Adormecia governador do estado sem saber se
acordaria governador. Conheço alguns detalhes dessa posição delicada,
porque fui colega de turma e sou parente do comandante da força pública
na época, o coronel José Cunha Ortiga, filho da Alzira Cunha, prima e
conterrânea de minha mãe. O José Ortiga, que terminou a Faculdade de
Direito em 1958, foi companheiro dos mais queridos e estimados e está
vivo até hoje, graças a Deus. Anos depois, quando a coisa se aquietou e
eu deixei de ser aquele deputado combativo, algumas vezes rixento, brigando
com o pessoal que usava farda, o já reformado coronel Ortiga me
explicou as várias passagens de dificuldade do governo do Dr. Israel, por
um triz não deposto pelos militares. Acrescento que o Ortiga quase perdeu
os seus direitos políticos por causa da posição extremamente viril
que adotou, em defesa do governador e da posse do vice-presidente Pedro
Aleixo. Quando do falecimento do Costa e Silva, o coronel participou
de pelo menos uma das várias reuniões realizadas na casa do Dr. José
Maria Alckmim, posicionando-se no sentido de que o Dr. Pedro Aleixo
deveria vir para Minas e aqui se empossar, com a cobertura ostensiva da
PMMG. Na ocasião eu, em meu radicalismo, nutria pelo Dr. Israel profunda
antipatia, devidamente retribuída, diga-se a bem da verdade. Tal
sentimento decorria de ele haver sido eleito em substituição a nosso candidato,
Sebastião Paes de Almeida, popularmente conhecido por Tião
Medonho, numa campanha que fizemos em apenas duas semanas. Vale
recordar que o Sebastião, por sinal meu chegado e saudoso amigo, foi
cassado numa torpe manobra da UDN junto ao Tribunal Superior Eleitoral,
o que nos deu apenas dezessete dias para fazer a campanha do candidato
que entrou em substituição. E eu, inteira e absolutamente
inflexível, entendia que o Dr. Israel deveria se filiar ao MDB, não à
Arena, que era representada pela UDN, pelo PSD e partes do PR, além

309
de outros setores reacionários. Achava uma traição dele ter se filiado à
Arena, quando foi eleito por nós, que, com JK à frente, viríamos a constituir
o MBD. Então eu, muito jovem, fortemente instado por JK e Sebastião
Paes de Almeida, fiz uma campanha tremenda, muito grande,
pelo Dr. Israel Pinheiro. E ele, dou a mão à palmatória, foi um grande
governador, um homem probo, honesto, até mesmo inventivo, já que ajudou
a criar as sublegendas, implantando o chamado “poder de mando”.
A sublegenda que mais se destacava nas eleições municipais é que tinha
o mando das decisões administrativas do governo do estado. Acresce esclarecer
que não tivesse ele feito aquela opção, não teria governado
Minas Gerais em tempo nenhum, nem posse teria tomado. Foi empossado
dois ou três dias antes de editado o AI-2. Mas, definitivamente, não
teria governado, como também o Dr. Negrão de Lima não teria governado
o estado do Rio de Janeiro, naquela época Guanabara, se tivesse
optado, como tantos desejaram, pelo MDB. Mas, repetia sempre o Antônio
Carlos Andrada, não o Magalhães Pinto, conforme comumente se
propala e acredita, a política é como nuvem, muda a cada momento. Com
ela, os nomes, os fatos, a interpretação dos fatos e a própria história. Porque
daí para a frente, a partir da eleição deles até o término dos mandatos,
o que tivemos no Brasil foram meros interventores federais nos estados.
Aqui em Minas, o primeiro desses interventores foi o Rondon Pacheco,
figura notável do ponto de vista administrativo. Outro foi Aureliano Chaves,
também um bom governante. O terceiro foi Francelino Pereira, com
quem eu tinha uma relação muito remota, basicamente de breves diálogos,
às vezes de meros cumprimentos, já que por ele nunca tive grandes
amores. Faço aqui absoluta questão de ressaltar que todos os três foram
homens de ilibado comportamento e irretocável trato com a coisa pública.
Até aquela ocasião felizmente, se posso assim dizer, não existia
esse negócio de meter a mão no dinheiro público. Apesar disso, embora
esse reconhecimento, reitero, faço questão de ressaltar, que todos os três
não deixaram de ser meros interventores do poder central em Minas Gerais,
como o foram também os demais governantes dos outros estados
durante o regime militar. Somente Israel e Negrão de Lima foram eleitos
pelo voto direto. O passar dos anos me fez compreender os motivos que
levaram o Dr. Israel a se filiar ao partido da situação, apesar de ter sido
eleito por nós, oposicionistas. Foi muito difícil, por tudo isso, marcar a
audiência a que me referi linhas atrás, afinal conseguida por intermédio
do deputado Bonifácio Andrada.

COMISSÕES DE TRABALHO

310
Foi intensa a atividade de Genival na Câmara Federal, com uma dedicação
só não exclusiva em decorrência do exercício da advocacia que,
embora diminuído, foi mantido durante a vida pública. Nos oito anos de
mandato, deu muito de si à Casa, especialmente pela participação nas diversas
comissões, mormente na de Educação e Cultura. Ao mesmo tempo
foi membro de outras, ora como titular – na Comissão Especial sobre o
Vale do São Francisco, ora como suplente, na Comissão de Legislação
Social.
– Eu participava muito das comissões da Câmara, e sempre ficava
como relator. Eu mesmo fazia meus relatórios, não chamava assessor
para fazer. Muitas e muitas noites passei fazendo relatórios e os colegas
até me criticavam: “você tem uma boa assessoria na Câmara, por que
não a usa?”. Mas para mim isso não funciona, sempre fui muito absorvente
nas minhas coisas, tanto quanto absorvido por elas. Faço minha
petição até hoje a caneta, passo para a secretária, quando ela me devolve,
revejo tudo. Sempre fui muito personalista com as minhas coisas. O que
assinei foi realmente coisa que fiz.
Na área da educação apresentou projeto de lei autorizando o Poder
Executivo a federalizar a Universidade de Montes Claros. O projeto foi
aprovado e, graças a isso, pode o governo federal, a qualquer momento,
criar uma universidade na cidade. A Unimontes, antiga Fundação Universitária
do Norte de Minas – FUNM –, foi estadualizada pela Constituição
Mineira de 1989. Outro projeto de lei nessa área autorizava o
poder executivo a instituir a Fundação Federal de Itajubá, em Minas. Na
área social, cabe mencionar os seguintes projetos de lei:
– O que dava nova redação ao artigo que dispunha sobre o levantamento
do saldo da conta vinculada ao FGTS pelo empregado, para aqui-

311
sição de casa própria. (Artigo 10 da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de
1966).
(DCN, 19/mar/77, págs. 1072/73).
– O que instituía junto ao BNH fundo especial destinado a cobrir
as prestações em atraso dos mutuários enfermos ou desempregados.
(DCN, 12/ago/78 – pág. 6536).
– O que isentava do imposto de renda os proventos da inatividade;
o que autorizava às pessoas físicas a abaterem até cinco por cento da
renda bruta a título de gastos com medicamentos, independentemente de
comprovação.
(DCN, 15/ago/78, pág. 6575).

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

JK PRESIDENTE - O ESTADISTA

312
Juscelino Kubitschek foi presidente num momento de conciliação
entre a política de massa (preocupada em responder aos anseios dos trabalhadores)
e a política econômica (concorde com os anseios das elites
nacionais e internacionais). Seu Plano de Metas, apoiado no tripé estado,
capital estrangeiro e capital nacional, trouxe significativo período de
maior estabilidade. O salário mínimo teve seu maior pico no ano de 1957,
momento no qual a indústria brasileira, no ritmo de “50 anos em 5”, se
desnacionalizava em setores dinâmicos importantes, que teriam a capacidade
de puxar a demanda e alavancar o crescimento econômico. Produziriam
bens de consumo duráveis, desde o automóvel até os produtos
eletrônicos. Genival conheceu JK ainda nos tempos de estudante. Tornou-
se, mercê de muitos anos de convivência, ardoroso admirador e
amigo. Depois de haver desistido da política, por desmorecimento e desalento,
já por desencanto confesso, desilusão, voltou por influência do
grande brasileiro. A amizade começada na campanha ao governo de
Minas, mais se estreitava desde a volta de JK do exílio. Quando ele foi
relegado ao olvido até por muitos que, nas horas de glória, se gabavam
de lhe serem próximos, mais Genival fez questão de honrar essa amizade.
Assim, foi natural que o recebesse no seu retorno ao País, abrindo-lhe
várias vezes as portas de casa, sempre com festas.
– E não era fácil fazer festa para Juscelino naquela época. Todo
mundo, gente do mundo político sobretudo, tinha medo de se comprometer.
Na ocasião, ele era presidente de honra do Banco Denasa, criado
com capital de seu genro, Baldomero Barbará (então casado com a Márcia),
do Dr. Luiz Souza Lima, e de mais uns poucos amigos. O cargo foi
um negócio “mais para botar o retrato de Juscelino na parede”. Na realidade,
o posto jamais foi exercido como honorário. Com aquele dinamismo
que lhe era próprio, incansavelmente empolgado com o que fazia,

313
Juscelino se transformou no maior corretor de títulos do Denasa na ocasião.
Ninguém conseguia recusar oferta dele, charme e envolvimento
personificados. E ele, que na época vivia extremamente apertado, com
dificuldades financeiras de toda ordem, dizia: “estou ficando rico”. Ganhou
o suficiente para sair do aperto, verdadeiro sufoco em que se encontrava.
Comprou a fazendinha em Brasília, onde viveu relativamente
em sossego, porque sossego total, durante todo o tempo que passou no
Brasil, isso nunca conseguiu. Então, dos anos 71 até sua morte, podemos
dizer que ele gozou de uma relativa tranquilidade. Poucos se lembram
das calúnias contra ele assacadas, das aleivosias de que foi vítima.
Imensa figura humana, estadista singular na história do Brasil, um apaixonado
pela Pátria, em momento algum se deixou abater por tudo o que
sofreu. Enquanto exilado, entre a cassação de seus direitos políticos e a
presidência de honra do Banco Denasa de Investimentos, muito poucas
foram suas vindas ao Brasil, sempre de passagem, com permissão e fiscalização
dos militares, até mesmo com data estabelecida para voltar.
Em duas ocasiões foi preso. Essas vindas eram, por tudo isso, fortemente
vexatórias. A partir, entretanto, de sua investidura como presidente de
honra do banco, houve relativa tranquilidade, uma quietude estável até
sua morte. Pelo que me recordo, uma dessas vindas se deu por ocasião
do falecimento de sua mãe, após o que teve de partir imediatamente.
Ainda me lembro de outra vez, nas mesmas condições, na época do falecimento
de sua irmã, D. Naná, casada com o Dr. Júlio Soares, quando
veio para assistir ao sepultamento e voltar o mais depressa possível. O
mesmo ocorreu quando do funeral do Dr. Alckmim, ao qual também
compareceu. Foi nesse enterro que o Carlos Murilo, o Renato Azeredo e
eu nos afastamos para evitar cumprimentos do Ministro Armando Falcão.
Bem me lembro, por exemplo, de que, depois de pouco mais de ano, talvez
um ano e meio de exílio, Juscelino, que na ocasião morava em Nova
York, fez outra de suas tentativas de regresso. Sofria demais com saudades
da Pátria, que amava perdidamente. Veio tentando ficar, mas na saída
de um espetáculo que fora ver no Teatro Municipal do Rio de Janeiro,
houve sua prisão, seguida de uma série de perseguições, exaustivamente
repetidas a partir daí. Interrogatórios duravam nove, dez horas, JK sendo
maltratado por oficiais de escalão inferior, subtenentes e até sargentos.
Quis o regime, de todas as formas, apagar da memória dos brasileiros a
imagem de seu cidadão mais amado. Não se contentou a ditadura, entretanto,
com o simples banimento. Perseguiu e humilhou o grande brasileiro,
implacavelmente. São muitos os registros desses episódios. De

314
certa feita, quando ele tentou descer de avião no aeroporto de Brasília,
vazava óleo no pequeno avião pilotado por João Milton Prates. Mesmo
assim não permitiram o pouso. Ao pedido de autorização para descer, o
funcionário da torre foi mal-educado, deliberadamente grosseiro: “negativo,
não está autorizado”. Então, numa emergência, pousaram em fazenda
próxima. O episódio, narrado por Vera Brant no seu Diário de
Brasília, e do meu conhecimento, faz ver a pressão oficial sobre o grande
líder. Mais que baixeza, quero enfatizar, baixaria. E despudorada. Depois
do exílio, JK esteve na Capital federal, numa tremenda fossa. Veio num
caminhão, de chapéu e óculos, para não ser reconhecido. Os militares
negavam-lhe a visita. Fora proibido de ver até sua obra maior. Exilado,
quando voltou, estava proibido de visitar a cidade que construíra. Seu
imenso prestígio, não obstante, permaneceu intocado.
– Fui sempre procurado por colegas da chamada ala dos autênticos
do MDB, desejosos de conhecer JK e mesmo debater com ele ações para
quando se voltasse à democracia plena. De uma dessas vezes, após prévio
entendimento com ele, sem conhecimento da mídia, para poupá-lo de
novos aborrecimentos com os militares, convidei trinta deputados mais
amigos para um almoço em minha residência. Não sei como, a notícia
vazou e a imprensa nadou de braçada, tendo como mote, alarmista para
o regime, um simples almoço de deputados jovens com o presidente tão
querido por todos nós. Foi interpretado como se estivéssemos tramando
a derrubada da ditadura militar por alguma força de armas, como se isso
fosse possível. Na véspera do almoço, à tarde, recebi um telefonema de
D. Sarah pedindo-me que fosse à fazendinha. Queria conversar comigo.
Atendi prontamente e, hora e meia depois, lá estava eu para ouvir daquela
grande dama sua preocupação com o encontro do dia seguinte, evento
que, certamente, com a divulgação que teve, traria grandes dores de cabeça
a Juscelino. Dizia-me ela que seu marido queria comparecer a qualquer
custo, já que se comprometera comigo. Ao mesmo tempo me pedia
que o desobrigasse do prometido. Assegurei a ela que tudo não passava
de má interpretação da imprensa, mas que compreendia a preocupação.
Sem tempo para desmarcar a reunião, mesmo assim liberei o presidente
do compromisso, dizendo-lhe que, quando do ágape, explicaria as razões
de sua ausência. Assim, pedi a ele e a D. Sarah autorização para, nas semanas
seguintes, levar à fazendinha parlamentares, em grupos de seis.
Conforme programado, o almoço foi realizado em minha casa com trinta
parlamentares, dentre os quais, à noite, levei os mais chegados a mim

315
para jantar na casa do presidente. Do primeiro grupo fazia parte o saudoso
Getúlio Dias, um dos campeões da redemocratização brasileira.
Apesar de nascido na civilizadíssima Pelotas, mais se assemelhava a um
centauro do território missioneiro da província de São Pedro do Rio
Grande do Sul. Comentava sempre, num quase dialeto, seu imenso orgulho
de ser daqueles que sustentaram as fronteiras da Pátria a “patas de
cabalo e pontaços de lança”. Encantado por conhecer e longamente conversar
com Juscelino, a quem tanto admirava, repartiu com ele o brilho
da noite. Contou muitos casos de Brizola, a quem periodicamente visitava
na fazenda onde ele se exilara, no Uruguai. Disse também, que por
sua indicação, tanto Brizola quanto JK tinham sido escolhidos para a
Academia de Letras de Pelotas. Acrescentou que, retornando Brizola ao
Brasil, gostaria de vê-los empossados juntos na Academia Pelotense, o
que infelizmente não aconteceu.
Quero, num preito ao Getúlio, informar que ele, enquanto vivo, era
realmente um centauro, mas, passados os arroubos de missioneiro, era
uma criatura cândida, um coração de ouro, como se falava de antanho
em Minas. Todos saíram da fazendinha tarde da noite, encantados com
a simpatia esfuziante de JK, conquistando a todos, mulheres e homens.
A propósito dessa simpatia, dizia-me o saudoso José Maria Alckmim,
na intimidade do seu lar, que algumas vezes era tentado a achar que Juscelino
não era deste mundo. Por sua extrema singularidade, e pela simplicidade
e simpatia que alcançava a todos, teria vindo de outro
universo.
Foi por ocasião do aniversário de Juscelino, num momento em que
ele, cassado e alvo da mais baixa perseguição, se viu abandonado por
muitos dos que se diziam seus amigos, que lhe prestei a homenagem na
Câmara, quando disse que iria cantar o sentimento popular em torno da
figura do notável brasileiro.
–Mas não enfocá-lo como o grande estadista, tarefa inúmeras vezes
tão bem desempenhada nesta Casa. Vou falar, srs. deputados, deste alguém
como gente. E como é difícil, a cada dia que passa, alguém ser
gente! Gente que ama, que sofre, que aceita, que protesta, que erra, que
perdoa, que luta, que muda, que impulsiona e é impulsionada, que crê
na força do sentimento íntimo, que despreza conceitos estereotipados,
que vibra, que palpita, que revê conceitos, que não foge, que não pretende
ser, mas que realmente é, que se impõe, enfim, pelo que tem de porosidade
humana.

316
Ressaltando este lado do homenageado, lembrou passos de sua trajetória:
– Vou falar do estudante humilde, depois, do médico, em seguida,
do político, do prefeito renovador, do governador que empolgou
e fez vibrar um povo normalmente triste, do grande
presidente, hoje cidadão do mundo, sempre o mesmo homem, do
começo às alturas, sempre gente. Em sua vida plena, através das
inúmeras esquinas que cruzou, sempre se manteve sem meneios e
afetações, aí residindo, basilarmente, o segredo do perene fascínio
que exerceu sobre seus semelhantes. Essa sua simplicidade de
modos e maneiras, fruto de humildade congênita, há de ser explicada,
por isso mesmo, em suas origens. Seu pai, homem de sensibilidade
artística, temperamento boêmio, encantava a noite da
bucólica Diamantina com o toque encantado de sua flauta. Se do
pai herdou a vocação para as artes e o temperamento boêmio, recebeu
da mãe, sertaneja de linhagem forte, impulso genético da
fibra espartana, a obstinação no querer e a crença profunda em
Deus. (...) Desde seus primeiros passos na vida pública, até hoje,
no trato cotidiano com os semelhantes, jamais conheceu o significado
da terminologia grandes e pequenos. Sua figura humana é
sempre a mesma, o coração compreensivo e manso, disposto à alegria
e ao perdão.
Genival aproveita para lembrar a novela televisiva em que a censura
impôs sérias restrições à imagem de Juscelino, no claro intuito de diminuí-
la perante o sentimento do povo. Observa que, se alguém abrir o catálogo
telefônico de qualquer cidade, ainda que desconhecida,
razoavelmente conhecerá sua vida, por citação das empresas mais importantes,
estabelecimentos comerciais mais poderosos, grupos familiares
mais destacados, profissionais importantes, num manancial
inesgotável de informações. E todos trazem a história da cidade, sua origem
e evolução, como se representa e o que pretende ter – menos o de
Brasília, no evidente objetivo de obscurecer, como se isto fosse possível,
a figura de seu fundador e construtor. Continua:
– O que aconteceu com Juscelino foi grave erro de perspectiva visual,
do qual, porém, nunca participou o povo brasileiro. Hoje, inequivocamente,
seja pelo impulso popular, seja pelo frio raciocínio dos que
ontem eram seus ferrenhos adversários, estamos todos, exceto os que se

317
julgam infalíveis, numa mesma posição: é preciso rever a punição imposta
a Juscelino. (...)
Era urgente formalizar o término da injustiça. O povo reclamava a
demora. E, como que numa premonição da tragédia que se sucederia um
ano mais tarde, Genival frisou: “quer vê-la enquanto em vida o grande
brasileiro”.(...)
Como tarda a declaração cuja hora todos sentimos ter chegado, a
amarga censura popular vem, pela boca do poeta, nas longas serenatas
de minha terra natal, quando o menestrel Olegário Versiani canta estas
mesmas serestas que Juscelino tanto ama:
ONDE ESTÁS JK?
JK,
onde está o alegre menino de Diamantina?
onde está sua alegria,
forjada na longa severidade de D. Júlia?
Onde está sua alegria estuante,
que fazia milagres diurnos de trabalho
e transbordava pela noite em serestas
e festas e danças?
Onde está o Presidente
que obrigou os ricos do café
a fazerem máquinas
e depois máquinas de máquinas?
Onde está o médico
que operou um País,
retificando a sua espinha dorsal
para colocá-la no centro do seu dorso
continental?
Onde está aquele sorriso magnético
que o povo recebia,
que o povo aceitava,
que o povo devolvia?
Onde está aquela alegria mágica
Que enchia o peito brasileiro
de orgulho e confiança

318
e determinação?
JK, o povo precisa de um amigo.
De alguém que é dele,
de alguém que mande nele com u’a
mão no ombro:
“vai, meu filho,
constrói este País com fé e trabalho”.
JK, onde está tua alegria amiga?
Onde está tua inocente cantiga
que fez de Diamantina
a pequena cidade de todo o País?
onde estão as candentes palavras
do orador elegante,
que acordava emoções nos peitos mais vazios?
Já foram, para sempre
arquivadas no mármore da História?
Quem te escondeu, JK?
Quem te escondeu do povo?
Foi a inevitável prudência mineira?
Foi a velhice traiçoeira?
Foram os donos da Pátria Brasileira?
Na sequência, o orador lembra algumas passagens da trajetória política
de JK:
– (...) governando Minas, é procurado pelo líder da maioria, que lhe
solicita seja removida uma diretora de grupo escolar – prática pseudopolítica
ainda hoje adotada em minha província. Queda-se pensativo Juscelino,
apenas por alguns segundos, suficientes para que replique: “Não
me peça isso, por favor. Veja quais são as obras de que seu município
precisa, que o atenderei. Você já imaginou a mágoa que ainda traria no
coração, se minha mãe, humilde professora, tivesse sido removida de
Diamantina, onde tinha seus parentes e amigos para auxiliá-la em suas
dificuldades de vida?” Venceu o argumento de quem sempre foi gente e
mais uma ponte foi construída nas Minas Gerais.
(...) Sempre gostou de dançar. Outros gostam de pescar, do jogo de
cartas, da caça, da natação – na imensa gama de predileção de cada um.
Mas a ele não perdoavam os adversários sequer predileção pela dança
como forma de diversão. Chamavam-no, por isso mesmo, sarcastica-

319
mente, de “Pé-de-valsa”. Com aquela autenticidade que lhe era peculiar,
adotou o apelido e o cultivou mesmo em suas campanhas políticas, cada
dia mais se identificando com a alma popular. Terminado seu mandato,
entregue a faixa presidencial a Jânio Quadros, conta Juscelino – com
uma gostosa gargalhada – que, no Rio, foi a uma boate com a esposa e
um grupo de amigos e dançou a noite inteira.
(...) Falávamos, certa ocasião, do espírito que presidiu a fundação
da Escola de Medicina de Montes Claros, minha terra natal, especialmente
do gênio inventivo de Mário Ribeiro. Este, médico, pretendia que
o ensino fosse adequado à realidade socioeconômica do sertão mineiro.
Voltava-se contra o excesso de especialização e queria formar clínicos
aptos a cuidar das mazelas comuns. Esses – assegurava – cuidariam de
mais de noventa por cento dos que adoecessem. E teriam um curso mais
rápido e barato. Empolgou-se Juscelino com a ideia da simplificação regional
do ensino da medicina e relatou-me uma experiência pessoal. Já
consagrado urologista, praticando apenas sua especialidade, viu-se, um
dia, em campanha política no distrito de Curumataí, local pobre e desassistido
de qualquer médico. Chamam-no, então, para fazer um parto que
se afigurava bastante complicado. Mesmo se sentindo temeroso da tarefa,
por culpa da especialização que exercia, dirigiu-se à parturiente. E completou
o relato: “Foi para mim um desafogo verificar, chegando ao casebre,
que a criança nascera, porque eu não saberia fazer o parto”.
De outra feita, viajávamos pelo sertão mineiro, numa verdadeira peregrinação
sentimental, a que ele chamava de “Hora da Saudade”, pois
que percorríamos exatamente a região que o elegeu deputado federal, em
1934. O reencontro com a base primeira foi comovente. (...) A noite já
era avançada quando chegamos, mais por insistência de Renato Azeredo,
à pequena cidade de Augusto de Lima. (...) E, em dado momento, Juscelino,
com seu gesto característico de passar longamente as mãos sobre
os cabelos, preso de violenta emoção, baixinho, exclamava: “Formidável,
como eu estava precisando disto, meu Deus!” .
Mas, srs. deputados, se me for necessário apontar o quadro mais comovente
que vivi em função de Juscelino, eu lhes diria que ocorreu, também,
numa cidade mais humilde ainda que Augusto de Lima. Com uns
companheiros, voltava eu de longa pescaria pelo Rio São Francisco. Sem
tempo de voltar a Januária, “apoitei” em Itacarambi. Era tarde na cidadezinha,
mais de nove horas. À procura da pensão, carregado com a tralha
da pescaria, passando numa estreita rua, minha atenção foi despertada

320
pela reza que se fazia numa humilde casa, e, sem que percebessem os
fiéis a minha presença, ouvi o “guia” dizendo um Pai-Nosso, por intenção
do Dr. Juscelino, sendo logo seguido por todos na oração maior. Encontrava-
se ele, nessa ocasião, exilado em Portugal, e o povo humilde já
pressentia o seu sofrimento. Rezava por ele, era só o que podia fazer.
Muitos outros casos poderia contar, se mais largo fosse o tempo. É este,
sem rebuços de fantasia, o homem que o sentimento nacional aponta
como seu maior vulto.
Srs. deputados, há quatorze anos, um jornalista brasileiro, em notável
série de reportagens que fez sobre o governo de Juscelino, concluía
dizendo que “se nada tivesse ele feito em favor do País, apenas a injeção
de otimismo que aplicou nos brasileiros já seria muito”. Numa frase,
David Nasser exprimiu toda a força espiritual do homem que procurava
analisar. Quatorze anos depois, Murilo Melo Filho, com aquela mesma
acuidade jornalística de Nasser, diria: “Nunca, como agora, o Brasil necessitou
tanto que lhe ministrassem uma dose maciça de ânimo e uma
oportuna injeção de otimismo”.
(...) Não conseguiremos, no entanto, srs. deputados, este clima de
vibração cívica de que é capaz o povo brasileiro, sem a simbologia de
um grande gesto. Não o conseguiremos sem a reconciliação entre o estado
e a nação, através do entendimento do mais vivo desejo desta, que
é a reabilitação plena de Juscelino. (...) Concluindo, sr. presidente, deixo
este apelo que reputo de bom senso: anistia plena e irrestrita, ainda que
exercitada em termos graduais, porque sempre se pode auferir os resultados
parciais.
Quanto ao senhor, Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, que
aniversaria no dia de hoje, receba a reverência de todo um povo, que
sempre acreditou na grandeza de sua alma e que se sente interpenetrado
por sua maneira de ser gente. Saiba Presidente Juscelino que, se a declaração
pela qual tanto ansiamos não vier, formal como já disse, ela está
ínsita no coração, nos nervos, na cabeça, enfim, na sensibilidade do povo
brasileiro que sempre o amou.
(Palmas).
Juscelino afetuosamente agradeceu.
Rio de Janeiro, 18 de setembro de 1975.
Meu caro Genival Tourinho,
Com a sua bravura habitual e com rara fidelidade que mantém
pelos amigos, você enfrentou o plenário da Câmara, trazendo para o de

321
bate o nome quase esquecido do seu velho amigo que, se ainda conta no
meio do povo com uma atmosfera de carinho e de apreço, longe anda
dos meios políticos.
Confesso que fiquei surpreendido com os nobres deputados que
apartearam favoravelmente, não só do MDB quanto da Arena, aos quais
vou dirigir também uma palavra de agradecimento e que me deram a
alegria de verificar que algumas das sementes que plantei continuam
dando frutos.
A tese que você defendeu foi admirável. Faço total abstração da
minha pessoa, pois nessa altura a mim não interessa nenhum ato político
que pudesse alcançar, mas anistia é uma medida destinada a fazer esquecer
ódios e ressentimentos e restaurar a paz e a harmonia de uma nação.
Daí a grandeza de seu gesto, a coragem de sua atitude. Verifiquei, quando
presidente, o alcance extraordinário de uma medida conciliadora. Apesar
de haver sido empossado no meio das lutas e incompreensões mais severas
que este País conheceu, ainda sob a crepitação emocional do suicídio de
Getúlio, consegui restabelecer no Brasil um clima tranquilo, no qual pudemos
realizar as metas estabelecidas e que fizeram a nação progredir 50
anos em 5 de governo. Acompanho toda a sua atuação no Congresso e sei
que você se desdobra em Minas para atender aos seus companheiros que
o apoiam. O alicerce que está construindo é sólido e estou certo de que
sobre ele veremos se erguer, muito breve, monumento muito mais sério e
maior do que aqueles que se contêm dentro do esquema de uma estrutura
de deputado. Depois do Renato não tenho dúvida de que você apanhará o
estandarte e com ele nas mãos também ninguém deterá os seus passos, na
conquista desta gloriosa tentativa de restaurar a democracia no Brasil.
Felizmente os hábitos humanísticos que trouxe de Diamantina me ajudaram
muito, depois que deixei a política. Voltei para os livros e no aconchego
de suas páginas encontrei o derivativo que me tem ajudado a viver.
Estou agora diante de uma perigosa aventura que não sei se terá êxito,
mas como não é do meu feitio ficar quieto, como não aceito a vida na imobilidade
da desesperança, estou tentando, como você já viu, uma eleição
na Academia Brasileira de Letras. As suas palavras, proferidas na Câmara,
me fizeram bem e fortificaram o meu trabalho porque projetaram
sobre o meu nome as luzes de uma publicidade que ajuda em qualquer
terreno. Muito obrigado, meu caro Genival, e acredite que aqui estará
sempre atento ao seu destino e às suas esperanças o amigo de ontem, de
hoje e de sempre, que lhe envia.
Afetuoso abraço, Juscelino Kubitschek.

322
Já naquele ano, Genival defendia a anistia para os políticos presos
e cassados.
– Quando recebi do Presidente Juscelino a carta de agradecimento,
já tinha cabal conhecimento de que ele estava concorrendo a uma cadeira
na Academia Brasileira de Letras. Contra ele se voltaram forças tremendas.
A Caixa Econômica Federal, por exemplo, deixou claro que não financiaria
a construção da nova sede da ABL, cujo presidente,
Austregésilo Athayde, se apavorou completamente com a possibilidade,
e pressionava a todos no sentido de que não votassem em Juscelino para
a Academia.
Boatavam até que, se ele fosse eleito, o presidente da república
não compareceria mais às sessões da academia. Na verdade, Juscelino
nunca se deixou abater por aquela primeira e única derrota eleitoral
em sua vida. Contam mesmo que, naquela noite, sequer se abalando
com o resultado, foi dançar com suas filhas. Fora vencido por um
único voto.
Vale lembrar que Juscelino, após o golpe de 64, foi interrogado, insultado,
desrespeitado de todas as formas, percorrendo verdadeiro calvário,
durante o qual se distinguiu pela paciência, firmeza e força de
espírito, virtudes que conservou até a morte, ainda hoje envolta em mistério,
dúvidas e suspeitas. O presidente-escritor foi vencido na pretensão.
Genival não se conformou com o desenlace e, a 23 de outubro, voltou à
tribuna para protestar, veementemente atribuindo o resultado ao esquema
das forças situacionistas, que uniram os militares e áulicos do regime
(em português bom e claro, “puxa sacos”) para impedir a eleição. Em
agradecimento, Juscelino escreveu a seguinte carta, cujo fecho é uma das
mais tocantes profissões de amizade que se possa fazer, e aqui não importa
quem envia ou quem recebe. É puro sentimento:
Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1975.
Meu caro Genival:
Eu tinha certeza absoluta de que você faria exatamente o que fez,
expressando-se com simpatia e amizade a propósito do último pleito na
Academia Brasileira de Letras. Eleição, você e eu sabemos, é uma caixa
de surpresas, e o resultado conhecido não me produz nenhuma mágoa,
nenhum ressaibo, e tanto o vitorioso quanto a instituição estão de parabéns.
Valeu-me, no entanto, a oportunidade para mais uma vez receber
de meus amigos demonstrações como a sua, que me enchem de satisfação,
de alegria e que se incorporam definitivamente entre as minhas re-

323
cordações melhores. Você particularmente tem sido um amigo infalível,
um desses tesouros que a gente deve conservar com cioso cuidado e é
por isso que o tenho bem fechado dentro do meu coração.
Afetuoso abraço, Juscelino Kubitschek.
A morte trágica do presidente, a vinte e três de agosto de 76, chocou
a toda a nação. Mostrou o quanto ele era amado de seu povo, que lhe dedicava
um carinho que a repressão estúpida não conseguiu sepultar.
Desde o momento em que surgiram as primeiras notícias, meio inverossímeis,
ainda vagas, do acidente, milhares de pessoas das mais variadas
classes sociais saíram em busca de confirmação. Todos se negavam a
acreditar. Junto aos que privavam de sua amizade, o impacto foi ainda
mais doloroso.
Genival lembra alguns fatos que, ainda e sempre, o entristecem.
– Eu estava em Montes Claros, vindo de Brasília de Minas, onde
havia presidido a uma convenção para eleição do diretório municipal do
MDB. Quando cheguei, por volta das seis horas da tarde, recebi telefonema
de um jornalista de Montes Claros, o Waldyr Senna Batista. E ele
me disse o seguinte: “Genival, estou ouvindo na Rádio Itatiaia uma notícia
e você não vai ficar nada satisfeito com ela. A Rádio Itatiaia está
divulgando que o presidente morreu num desastre de automóvel na via
Dutra”. Não acreditei e disse ao Waldyr: “quinze dias atrás, também mataram
o presidente”. Eu estivera com ele na casa de uma amiga, a Nieta,
que tinha perdido o marido, Geraldo Vasconcelos, muito amigo dele, e
que tinha sido deputado federal pelo PSD. Juscelino me contou que naquele
dia tinha corrido um boato de sua morte, e que a imprensa tinha
até invadido sua fazenda. Ele ainda brincou com o pessoal: “chato furtar
de vocês essa manchete – MORREU JK –, mas estou vivo”. E convidou
todos para tomar uísque com ele. Quando, dias depois, me contava isso,
comentou que o pessoal não tinha mais o que inventar e vinha com essa
história de que “Juscelino tinha morrido!” Por via das dúvidas, telefonei
para o apartamento dele no Rio de Janeiro. Eu tinha dois ou três números,
todos estavam ocupados. Comecei a ficar assustado. Juscelino morava
no oitavo andar de um prédio na Avenida Atlântica, então liguei para o
apartamento 101. Uma senhora me atendeu e perguntei: “A senhora conhece
D. Sarah?”.
“Não. Sei que ela mora aqui, conheço só de cumprimentar, por
quê?”

324
– É o deputado Genival Tourinho, de Minas Gerais, que está falando.
Está correndo uma notícia aqui, profundamente aborrecida para
nós, de que o presidente teria morrido em um desastre de automóvel e
eu queria falar com D. Sarah. Será que a senhora poderia fazer o favor
de pedir a ela para deixar um telefone desocupado para eu tentar contato?
“Pois não, vou lá em cima falar, mas o senhor pode ter certeza de
que isso não aconteceu, o Brasil não merece isso.”
– Então vou lhe pedir outro favor, a senhora não desligue, porque
consegui esta ligação com extrema dificuldade.
Naquela ocasião não havia DDD. Pedi à telefonista para me dar preferência.
Tinha falado com o presidente da companhia telefônica, Luiz
de Paula Ferreira, meu amigo pessoal, que mandou me dar prioridade.
Fiquei com o telefone na mão, num espaço de cinco ou seis minutos,
quando a senhora voltou ao telefone:
“Olha, o pessoal lá em cima está assustado, não está querendo
acreditar nisso, mas na hora em que eu estava entrando no elevador, me
encontrei com uma senhora mineira, D. Édila Couto, que esteve no local.
Essa senhora daí de Minas disse que esteve no local, reconheceu o corpo
do presidente, e estava levando a notícia para D. Sarah.”
Eu, em seguida, consegui falar com ela, que disse:
“Oh Genival! Até aí essa notícia maldita já chegou?”
– É. Chegou, lamentavelmente.
“Você tem o telefone do Renato?”
– Tenho.
“Não é o nosso Renatinho, não.” (“nosso Renatinho” era o Renato
Azeredo).
– Sei, a senhora quer o telefone do Renato Costa Lima.
O Renato tinha sido Ministro da Agricultura do Juscelino, e tudo
indica que, quando Juscelino saíra de carro naquele dia, ia para a fazenda
dele. Dei o número do telefone a ela. Então, quando falei que estava em
Montes Claros, percebi que ela ficou mais assustada ainda, pensava que
eu estivesse em Brasília. Depois, quando me encontrei com ela no sepultamento,
ela me abraçou, chorando, e disse o seguinte: “quando você,
meu filho, me telefonou de Montes Claros, tive a certeza de que Juscelino
tinha morrido. Em seguida a Édila chegou com a confirmação”.
Vim para Belo Horizonte totalmente abalado. Meu primo Raimundo,
percebendo que eu estava muito abatido e chorando, disse: “você

325
não vai dirigindo, já arrumei fulano para levá-lo a Belo Horizonte”.
Cheguei tarde em Belo Horizonte. Busquei contato com o Renato Azeredo,
que estava viajando, também buscava contato comigo e ficou sabendo
da notícia igualmente através do rádio. No dia seguinte fomos para
Brasília no avião de um amigo comum, o Aníbal Teixeira. Quando chegamos
a Brasília, estava aquela comoção, o pessoal não deixava o corpo
ser conduzido e chegar à porta do Cemitério da Esperança. A imprensa
toda divulgou, foi uma repercussão imensa. A essa altura era eu quem
estava comandando a coisa: o corpo ia ficar no velório ou não ia? Porque
a família entendia que o corpo deveria ser imediatamente sepultado. Um
major me perguntou:
“O que fazer?”
– Põe o corpo no velório.
Quem estava comigo e me ouviu dando esta ordem foi um colega
de turma, conterrâneo e amigo, o Olegário Versiani dos Anjos. O corpo
ficou no velório e todo mundo passava, ia vendo, passava a mão no caixão.
Teve uma hora em que fiquei muito emocionado porque, dessas milhares
de pessoas que desfilaram anonimamente na despedida do
presidente, uma foi meu filho. Ainda menino, teria uns quatorze para
quinze anos naquela ocasião. Eu nem sabia que ele estava lá na fila. Por
volta das onze horas da noite, o corpo foi finalmente baixado à sepultura.
Renato Azeredo queria que eu falasse em nome de Minas Gerais, mas
achei que definitivamente quem deveria falar era ele. Três ou quatro oradores
falaram, dentre eles o Renato. O sepultamento terminou depois de
meia-noite. Foi quando saímos do Campo da Esperança. Mas nunca vi
um espetáculo de tamanha comoção, de tamanha participação popular
como na morte de Juscelino.
Na farta cobertura jornalística, foi destaque a verdadeira multidão
que, no Rio de Janeiro, levou seu adeus a JK. A imprensa cobriu tudo. O
corpo foi velado no IML, no saguão da revista Manchete, e no Aeroporto
Santos Dumont, de onde embarcou para a capital federal. O cortejo levou
quase uma hora e o Jornal de Brasília noticiou:
“Morto, o ex-presidente Juscelino Kubitschek fez reeditar um
espetáculo que Brasília só havia experimentado na sua inauguração
em 60, e dez anos depois, quando os tricampeões de futebol
voltaram do México: um quinto da sua população – cerca de cem
mil pessoas – saiu às ruas, foi ao aeroporto, à catedral e ao cemitério”.

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Ainda o mesmo jornal, registrando a emoção de Genival:
“Visivelmente emocionado, chegou acompanhado de sua esposa, o
presidente da Editora Bloch, Adolpho Bloch, sendo seguido do deputado
Genival Tourinho, que se abraçou durante longo tempo com dona Sarah,
ambos chorando convulsivamente”.
(Jornal de Brasília, 24/ago/76, pág. 5).
A missa, praticamente não pode ser celebrada, dado o número de
interrupções que sofreu. A cada momento chegavam à catedral amigos
da família, em prantos
O ‘O Jornal’ noticiou que, enquanto aguardava o corpo do presidente,
Genival Tourinho, “que durante todo o tempo esteve ao lado de
D. Sarah e suas filhas, não escondia sua emoção e, por várias vezes, não
se conteve e chorou muito. Lembrava ele, no cemitério, os anos em que
conheceu Juscelino – ele, líder estudantil – JK, governador de Minas Gerais.
Cassado JK, voltou Genival Tourinho a reatar a antiga amizade,
agora mais fortemente. Sobre as homenagens que estão sendo prestadas
a JK, diz Tourinho que: elas deveriam ter sido prestadas em vida”.
Aqui, cumpre corrigir a notícia, quando diz “voltou Genival Tourinho
a reatar a antiga amizade”. Ela jamais foi interrompida. Foi duradoura
e sempre crescente.
–A revolução de 64 cometeu um tremendo erro ao cassar o mandato
do senador e suspender os direitos políticos do Presidente Juscelino Kubitschek...
Uma pena que os que já reconheciam este erro não tivessem
tido a coragem de o declarar formalmente, num documento escrito e de
ampla reabilitação política. Com o conservadorismo que marca a minha
gente, toda acostumada, até o governo de Juscelino em Minas, com a limitada
ação governamental de nomear, prender e soltar, pagar professores,
juízes, polícia, coletores e quejandas outras, de vez em quando saindo
um prédio público ou uma pontezinha, mais para agradar o chefe político
local, o estilo do novo governador haveria mesmo de causar espanto. Introduziu
ele, em Minas e no Brasil, dois novos elementos na arte de governar:
o econômico e o social. (...) Antes dele, mineiro não acreditava
em infraestrutura como fator de desenvolvimento global. Queria era o
benefício direto, rápido, e do qual se pudesse tirar proveito eleitoral.
Numa colocação simples, Minas, antes dele, se alimentava apenas do jurídico
e do político. Foi ele, entre nós, quem formou o quarteto ideal em
administração pública: o jurídico, o econômico, o social e o político, levando
o novo estilo à presidência da república.

327
Aos que chamavam JK de faraó, Genival lembrou Lebret:
“É melhor ter a humildade de empreender grandes coisas, mesmo
arriscando o fracasso, do que o orgulho de um sucesso completo no medíocre”.
Depois de citar passagens da trajetória do grande líder, o deputado
lembrou pedido feito quando Juscelino ainda era vivo: a anulação do ato
que o afastara da vida pública, pedido que renovava naquele momento:
– Em termos gerais, todos entendemos que, mesmo tardiamente
para o indivíduo, mas oportuno pelo sentido de reparação à nação, é chegada
a hora de se anular, em todos os seus efeitos, diretos e indiretos, declarados
e não declarados, a punição imposta a Juscelino. (...) Apelo aqui,
também, à história, que há de julgar a revolução de 1964, em todos os
seus atos, principalmente no que mais traumatizou a opinião pública brasileira.
Treze anos após, não pode haver mais jacobinos no interminável
processo revolucionário brasileiro. Há de ter chegado a vez dos girondinos,
que pela força do bom senso, proclamarão a plena reabilitação daquele
que tanto amou e tão amado foi pela nação. Era o que tinha a dizer.
(Palmas).
(DCN, 23/ago/77, págs. 6977-79).
Recebeu cumprimentos efusivos de diversos colegas. Entre eles, o
de Figueiredo Correa, que se manifestou em nome da liderança do MDB.
O preito se repetiria, na mesma data, no ano seguinte e pelos que vieram,
tornando-se quase uma tradição da Casa esta homenagem de Genival ao
grande brasileiro.
Criticou o regime, que tinha horror ao debate e procurava adaptar
as necessidades do País “às supostamente miraculosas fórmulas tecnocráticas”.
Agiam os militares como tirano ao qual tinha de se jungir a
nação, esta “tratada como criança submissa”.
Numa clara alusão ao Presidente Geisel, Genival continuou:
– O paralelo aqui esboçado já demonstrou suficientemente que as
duas personalidades jamais se encontrarão, nem mesmo no infinito. No
entanto, na construção da imagem de uma delas, debalde procuram os experts
da publicidade aproveitar valores humanos de Juscelino. E até
mesmo o nome do inesquecível presidente tem sido utilizado pelo androide
político, querendo auxiliar a si mesmo na construção da desejada
imagem. Assim, recentemente, em declarações prestadas à imprensa, co-

328
locou-se favoravelmente a uma “reabilitação post mortem” de Juscelino.
Ora, srs. deputados, nada mais impróprio e constrangedor aos sentimentos
dos brasileiros do que esta colocação. Reabilitação, com o seu rigor vernacular,
só poderia ocorrer se Juscelino, em algum tempo, houvesse perdido
a estima pública, o que ninguém pode admitir. Não para Juscelino,
que agora é tarde, mas pelo seu sentido de reparação à nação, que se sentiu
violentada pelo seu banimento da vida pública. O que todos pedem não é
a reabilitação, mas, sim, a anulação do malfadado decreto de cassação.
Pede a nacionalidade o reconhecimento formal do erro do estado. E este
mesmo estado há de entender um dia, pelos exemplos de Juscelino, que
ele, imolado que foi pela cizânia, se transformou no verdadeiro patrono
da anistia ampla em nosso País. E, quando ela vier, o que não tardará
muito, um amplo sorriso cobrirá as Terras de Santa Cruz.
(Muito bem! Palmas).
Poucos dias após a morte de Juscelino, a três de setembro, Genival
iniciou campanha de levantamento de fundos para a edificação de um
monumento à memória de JK. Escreveu então:
“JUSCELINO KUBITSCHEK. – Como ele mesmo definia, estadista
é o que vê as coisas antes dos outros. O estadista é o homem. Seu mundo
não é apenas limitado pelos interesses do estado, não vive apenas plantando
carvalhos. Planta flores, também. Por isso mesmo qualquer um pode
ser político, mas como é difícil ser estadista. Principalmente, quando temperado
pelo gosto da boemia, pela delicadeza, pelo antiformalismo, por
natural humildade, enfim, pela porosidade de viver. Juscelino foi tudo
isto. Como soube apreciar a vida, querendo, algumas vezes, qual adolescente,
bebê-la de um sorvo só. Acima de tudo, foi o grande estadista da
América do Sul e vai ser lembrado eternamente, por ter sido estadista e
gente, a um só tempo. Montes Claros o conheceu em duas facetas. Se o
indivíduo alimentava a alegria do espírito, a exuberância da comunicação,
a marca do gênio ele a deixou plantada, também aqui. A euforia do progresso,
de que vivemos hoje, nasceu há cerca de quinze anos e foi vislumbrada
por ele. Sudene e Três Marias são a base que construímos.
Ambas, como Márcia e Maria Estela, filhas de Juscelino. E como ele tinha
consciência perfeita dessa realidade que construiu! A Montes Claros dispensava
as suas mais carinhosas referências, sempre ávido de notícias do
seu progresso, responsável que foi pelo seu surto desenvolvimentista. Um
montes-clarense teve o privilégio de passar longas horas com ele, em bate-

329
papo interminável, na sua última noite de vida. Do Restaurante Paddock
ao bar do Hilton Hotel, durante várias horas, Ruy Velloso Versiani e Olavo
Drumond ouviram dezenas de vezes o nome de nossa terra. Foi a última
noite dele, e como se falou em Montes Claros! A tanto amor, a tanto interesse,
a tantos benefícios que nos ensejou, nossa gente não pode ficar só
nas lágrimas, cuidando do machucão sentimental que sua morte nos ocasionou.
Sob a liderança dos dois jornais de Montes Claros, sem qualquer
caráter político partidário – conclamo – vamos iniciar uma campanha popular,
visando à obtenção de fundos para a edificação de um monumento
a Juscelino. Vamos desrespeitar a modéstia de JK, fazendo deste monumento
o nosso cartão postal, a senha da nossa eterna gratidão. Que respondam
os nossos dois jornais.
Belo Horizonte, 3 de setembro de 1976 – Genival Tourinho”.
A iniciativa, conforme relatou, teve desdobramentos.
– Mandei cópia dessa carta para D. Sarah Kubitschek, que me
disse o que D. Amélia Passos, viúva de Gabriel Passos, também grande
amiga minha, depois confirmou: “quem despertou a atenção da Sarah
para a construção do Memorial JK foi você, com aquela carta”. A gente
queria e falava em monumento, um grande monumento a ele. Então D.
Sarah me disse: “quando li sua carta, pensei logo num memorial e vou
dedicar minha vida a ele”. Por isso, de certa maneira posso até dizer,
com muito orgulho, que fui um dos primeiros a pensar na realização
do memorial que, entretanto, inexistiria, não fosse a devoção que total
e integralmente lhe dedicou D. Sarah Kubitschek. Porque a campanha
para erguê-lo iria tomar rumos bem diversos do proposto de inicio. O
governo federal, muito espertamente buscando tirar proveito político
da ideia, e tendo necessidade vital de se popularizar, encampou-a,
doando terreno para a edificação do prédio. Meu pensamento era construir
este memorial com meios conseguidos por nós, entre os homens
da minha geração, como falei no discurso da Câmara. Como essa não
era, entretanto, preocupação do governo, quase que simultaneamente
o presidente vetou projeto de lei de autoria do senador Tancredo Neves
que propunha ressalvar, perenemente, a figura de JK. Foi a gota d’água
para mim, de há muito insatisfeito com os rumos que a campanha vinha
tomando. Na tribuna, de improviso, fiz contundente pronunciamento,
começando por mostrar estranheza diante dos últimos acontecimentos:
– Não entendo, sr. presidente, srs. deputados, a razão disso, porque,
no mesmo momento em que se tolhe a plena via do restabelecimento da

330
imagem do presidente perante a história, pequenas facilidades em seu
favor são concedidas. Foi doado um terreno para nele se construir o seu
memorial; foram-lhe prestadas honrarias pós-morte; houve uma série de
festivais por aí, aproveitando-se até mesmo da inocência de D. Sarah Kubitschek
de Oliveira.
Não obstante os anos decorridos, continuam fortes as lembranças:
– Num dos discursos que fiz em homenagem a Juscelino, eu, aborrecido
demais, nem queria falar, porque entendia que o Memorial JK não
deveria ter sido feito com ajuda dos militares. Achava que deveriam erigilo
pessoas da minha geração, que sabiam do valor do presidente e da imperiosidade
de legar à posteridade um monumento feito pelos homens
da oposição, nunca pelos da situação. Houve esse momento em minha
vida em que fiquei profundamente aborrecido, descrente, por ver que a
família do Presidente Juscelino estava aceitando os acenos do governo
Figueiredo, que doou o terreno para o memorial. Achava que não podíamos
receber nada de um governo que tinha procurado descaracterizar
Juscelino. Mas o pessoal ficou insistindo e, de improviso, pronunciei o
discurso a que intitulei – e por aí dava para imaginar meu estado de espírito
– “os corvos e Juscelino Kubitschek”. Sob a mais viva emoção,
passavam pela minha cabeça cenas de minha chegada em Brasília para
o sepultamento do grande brasileiro. E me recordo perfeitamente de
haver visto a bandeira nacional plenamente desfraldada em frente ao prédio
da Câmara dos Deputados, ao mesmo tempo em que a do Senado da
República estava a meio pau. Enquanto o Magalhães Pinto teve a hombridade,
a virilidade, o destemor mesmo, de mandar descer a meio pau a
nossa bandeira, a da Câmara dos Deputados permaneceu como estava.
Detalhe: a Câmara era presidida na época pelo deputado Célio Borja, um
pigmeu moral que, posteriormente – em paga de seu servilismo ao regime,
chegou até mesmo à presidência do Tribunal Superior Eleitoral, o
que, aliás, me causou viva indignação. Fui observando outras bandeiras
hasteadas a meio pau: a de Portugal, em seguida a da França, a do Paraguai,
a dos EE.UU., de tal maneira que, ao meio-dia, todas as bandeiras,
de todas as embaixadas – inclusive a da embaixada russa, e de todo o
bloco socialista, todas – friso, estavam baixadas a meio pau, exceto a
bandeira do palácio do governo federal, Palácio do Planalto, residência
oficial do Presidente Geisel, e a da minha Casa de trabalho, a Câmara
dos Deputados. Esta, até o momento do enterro permaneceu nas alturas.

Essas coisas, que realmente causavam um misto de indignação e emoção,

331
quase me levaram às lágrimas enquanto eu pronunciava esse discurso,
que ainda hoje é muito comentado na Câmara, principalmente pela quase
brutalidade com que recusei o aparte pedido pelo famoso deputado Jorge
Arbage (que vivia de negociatas, mal visto por todos). A propósito, no
décimo aniversário de Brasília, redigi um requerimento em que pedia a
Célio Borja a convocação, um convite que fosse, para que Juscelino comparecesse
às festas de comemoração deste aniversário da Capital. Consegui,
com extrema facilidade, as assinaturas de Renato Azeredo, de
Tancredo Neves, de Camilo Nogueira da Gama e de outros deputados
mineiros. Borja nem resposta deu. Naquela ocasião a coisa contra Juscelino
era realmente impressionante. Havia, no Rio de Janeiro, uma juíza
federal, Maria Rita Soares de Andrade, que chegou a decretar a prisão
preventiva de JK, baseada no artigo 312 do Código Penal, com pena prevista
até 12 anos, por supostas irregularidades na aquisição de material
para construção do Hospital Distrital de Brasília. O então procuradorgeral
da república, Alcino Salazar, de triste memória, assinale-se, pediu
o sequestro de bens do ex-presidente. Daí para a frente, desencadeou-se
contra Juscelino todo e qualquer tipo de perseguição.
Esclareço que relutava em falar, porque era profunda e intimamente
ligado ao presidente, ao homem Juscelino e a toda a sua família e receava
até mesmo um destempero de linguagem no plenário no momento em
que vivia tremenda dificuldade, temendo inclusive pela minha liberdade
pessoal e pelo meu mandato. Isso foi em setembro de oitenta, dois ou
três meses depois eu seria julgado. Então, eram ameaças daqui e dali,
ameaças dacolá, bomba em casa, telefonema anônimo e covardes intimidações
de todo tipo. Depois veio o atentado contra mim, que mantinha
a intenção de não falar, embora não concordando com aquilo.
O incidente com Jorge Arbage, até hoje lembrado por sua rudeza
até agressiva, ocorreu quando de discurso veemente, marcado sobretudo
pelos apartes. Nele fui extremamente duro, em particular com relação ao
Arbage. Ele insistia irritantemente em que eu lhe desse um aparte, fui
fingindo que não ouvia. Mas chegou um momento, quando ele disse:
“permite um aparte?”, em que, não me contendo, respondi:
– Não concedo aparte a V. Exa. Faz parte V. Exa. desse elenco que
acabo de vergastar, não tem V. Exa. autoridade moral para me dirigir a
palavra, deixo de lado qualquer comportamento formal e nego o aparte
a V. Exa.
Isso ficou registrado, e termina com oportuna interrupção de Pimenta
da Veiga: “nobre deputado Genival Tourinho, não vou me fixar

332
na mesquinhez, na pequenez do ato produzido pelo general Figueiredo
ao vetar o projeto que pretendia devolver as condecorações e as medalhas
do Presidente Juscelino Kubitschek. Isso porque, naturalmente, é desnecessário
dizer da nossa repulsa, sobretudo dos mineiros, a esse ato pequeno,
mas quero dizer apenas que V. Exa. é um dos poucos cidadãos
brasileiros que podem fazer um discurso no tom e na forma com que está
fazendo a respeito de Juscelino Kubitschek”.
A fala de Pimenta da Veiga foi mesmo providencial para fazer
com que Genival recobrasse a serenidade, conforme reconheceu na
tribuna:
– Agradeço, nobre deputado Pimenta da Veiga, o seu aparte. Suas
palavras estão incorporadas ao meu pronunciamento. Aceito-as com o
maior prazer. Perdoem-me os colegas, perdoe-me a mesa se, por força
da emoção ou por força de temperamento, fui longe demais. Mas, creiamme,
sr. presidente e srs. deputados, hoje tive oportunidade de soltar tudo
aquilo que há muitos anos vem apertando meu sentimento, vem apertando
as minhas entranhas e me transformando num homem realmente
angustiado, num homem que não sabe entender determinados tipos de
comportamento humano, que não sabe entender porque se exige do
homem público tanta hipocrisia, tanto abaixar a cabeça, tanta ausência,
afinal de contas, do que a vida poderia chamar de porosidade, de verdade,
de doçura, de compreensão, de amor. (Palmas)
(DCN, 20/set/80, págs. 10869/871).
Oficialmente reabilitado o nome JK, que jamais decaiu no conceito
público, diametralmente oposto passou a ser o comportamento das pessoas.
Genival, que continuava a prestar-lhe a já tradicional homenagem
relata, enojado, uma das sessões após isso:
– Formou-se aqui uma longa fila de oradores para me apartear, num
discurso que eu fazia em homenagem a ele. E que pasmo, que indignação
senti, ao ver que naquele microfone de apartes aparecia como amigo de
Juscelino a ardilosa figura do ex-interventor de Minas, Francelino Pereira.
Fiquei escandalizado, como escandalizado fiquei com tantos outros
desfibrados, sem coragem moral, incapazes de acender a candeia, incapazes
de levar luz, mas que formavam fila ali, querendo faturar politicamente
em cima do cadáver de Juscelino Kubitschek.
Tomado de indignação, Genival chegara a dizer que, quanto mais
vivia, mais se enojava da humanidade e que, algumas vezes, “tive de me

333
dirigir ao banheiro para poder vomitar, com nojo de muitos homens que
tinham assento no plenário desta Casa”. Quando Juscelino retornou do
exílio, lá estavam para abraçá-lo não mais que cinco ou seis amigos próximos.
As pessoas tinham medo de se aproximar. E quando Genival abriu
as portas de sua casa para comemorar o retorno, muitos dos que juravam
amizade a JK deixaram de comparecer, por receio de terem as placas de
seus carros anotadas pelo DOPS. Genival salientou que, após a reabilitação
oficial – naquele momento castrada pelo veto ao projeto de Tancredo
Neves –, fez questão de se afastar de todas as homenagens
prestadas a Juscelino. Incomodava-o profundamente ver nelas a presença
dos algozes de ontem.
–Afastei-me, até mesmo respeitando os sentimentos de sua família,
particularmente de D. Sarah, entendendo o drama que aquela extraordinária
senhora sentia em relação ao culto que se faz e deve fazer do grande
homem público que foi seu marido. Afastei-me dela, até um pouco sem
entender o que estava acontecendo, porque acreditei, srs. deputados, que
a recuperação plena, a vestimenta de herói nacional de Juscelino Kubitschek,
teria de vir pelas mãos dos homens da oposição, porque nós o faríamos
realmente com toda a sensibilidade, nós o faríamos com toda a
dignidade, nós o faríamos com o respeito dos nossos filhos, com o respeito
dos nossos pósteros e com o respeito daqueles que nos antecederam.
Nunca aceitei este esquema.
Dois anos após a morte de JK, outra era a situação. Se, quando
da homenagem feita ao presidente em 75, um clima de covarde incerteza
se instalara, agora as ausências de ontem se transfiguraram em
presenças desavergonhadas. O Memorial JK foi inaugurado, na capital
federal, a 13 de setembro de 81. Na véspera, os restos mortais do presidente
foram velados no Salão Negro do Congresso. Coberta com a
bandeira nacional, a urna foi transportada em um carro do Corpo de
Bombeiros escoltado por batedores da Polícia Militar. Na chegada da
urna funerária, Genival, visivelmente emocionado conforme a imprensa
registrou, declarou preferir que a homenagem fosse prestada
logo depois que as oposições tivessem o poder. “Caso a homenagem
fosse prestada pelos de minha geração, ela teria muito maior calor,
teria outro sentido.” (Jornal de Brasília, 12/set/81).
Pela manhã houve sessão solene na Câmara dos Deputados, e dali
a urna seguiu para a Praça do Cruzeiro, onde foi celebrada missa com a

334
presença do Presidente Figueiredo. Houve apresentação da soprano mineira
Maria Lúcia Godoy e, por fim, o enterro no memorial. Anos mais
tarde, refletindo sobre a construção do memorial, outra é a abordagem
de Genival:
– O interessante é que, anos depois, quando passo o olhar por isso
tudo, verifico o seguinte: D. Sarah estava absolutamente certa. Porque
se ela não tivesse feito o memorial, se não tivesse aceitado o oferecimento
do governo, não teríamos o memorial. Não teríamos, porque acabaria
caindo no esquecimento. Só mesmo uma mulher apaixonada
poderia levar adiante aquele projeto. D. Sarah sempre foi muito apaixonada
por Juscelino. Sua irmã, com quem muito convivi, D. Amélia Passos,
viúva de Gabriel Passos, me contou que, logo após a morte do
cônjuge, D. Sarah esteve com ela e disse: “Amélia, você sabe que o Juscelino
sempre foi o pior dos maridos e sempre fui uma mulher apaixonada.
Mas, agora que o marido morreu, vou cuidar apenas da imagem
do homem público, ele nunca será relegado ao ostracismo”. E se saiu
com essa história de memorial.
Isso D. Amélia Passos me contou na presença de muitas pessoas.
Quando a mulher apaixonada que era D. Sarah disse que Juscelino
foi um péssimo marido é porque ele, notoriamente, teve uma série de
flertes, namoros e aventuras, de que ela acabava sabendo e, definitivamente,
não aceitava. Entretanto, quando o marido morreu, ela ficou preocupada
em guardar a dimensão do grande homem público que ele foi.
Mas Juscelino, pelo fato mesmo de ser uma figura pública, inventavamlhe
casos, sobretudo deslizes conjugais, muito mais do que os que realmente
pudesse haver, e os alardeavam. De qualquer ligação de amizade,
simples que fosse, nasciam ilações. Eu mesmo fiz uma. A bem da verdade,
sutilmente rechaçada. O presidente mantinha um relacionamento
muito amistoso, de trocar frequente correspondência com madame Scheneider,
uma francesa, dona da Simca-Chambord (indústria automobilística,
das pioneiras no Brasil). Escreviam cartas um para o outro, era uma
correspondência intensa mesmo. Juscelino falava muito bem o francês,
tanto quanto redigia com facilidade no idioma. Em certa ocasião me estendeu
para ler uma carta dela, considerando uma crítica qualquer feita
por ele com relação à Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Ele não teria entendido bem o posicionamento da França naquela questão,
já não me recordo qual era. Mas era tão viva a troca de correspondência
entre os dois, que cogitei de algo além do formal. Assim, certa

335
ocasião, na fazenda, conversando com ele, que estava eufórico com o recebimento
de mais uma carta (“ô mulher inteligente”, comentou), brinquei
e falei:
“Presidente, com todo o respeito, posso fazer uma pergunta ao senhor
acerca da madame Scheneider?” Ele olhou para mim assim..., levantou
a sobrancelha esquerda, e quando ele percebia qualquer coisa,
aquela sobrancelha ressaltava, se arqueava, ficava quase que circunflexa,
tomava formato de meia lua.
“Perguntar, você pergunta o que você quiser, tem o direito, mas eu
também tenho o direito de não responder.”
Aí deu uma sonora gargalhada, e não fiz a pergunta em razão da
curva acentuada da sobrancelha esquerda e também da gargalhada dele
que, no meu modo de entender, deixava no ar a suspeição que eu tinha.
Eu fazia sempre várias perguntas ao presidente, que me permitia
isso. E ele, quando achava uma qualquer indevida, não despistava. Simplesmente,
não respondia. Mas eu, quando questionava, era sempre com
o máximo respeito, como todos os que o cercavam. Em toda a minha
vida vi no máximo dez pessoas, se tanto, chamarem-no simplesmente
Juscelino ou Nonô. Pelo contrário, todo mundo falava “governador, senhor,
presidente”. O Tancredo Neves, por exemplo, só o chamava de “Dr.
Juscelino” e “senhor”. Ele gostava muito da palavra formidável, que
usava com muita frequência. Um dia, sem mais nem menos, inesperadamente,
numa roda de amigos falou: “esse Genival é formidável. Só tem
um defeito: faz operação sem anestesia. Quando tem que falar as coisas
dele, fala mesmo”. Era um conceito dele, pelas intervenções que eu fazia,
pelas muitas conversas, pelas denúncias ao regime militar, denúncias que
valeram inclusive o término da minha carreira política.
Um belo dia, brinquei com ele e inquiri:
– Presidente, agora que o senhor ficou amigo do Lacerda, como é
que explica aquela situação de ter proibido a presença dele na televisão?
JK deu uma daquelas suas gargalhadas francas e abertas, e respondeu:
“se eu tivesse permitido a presença dele mais vezes na televisão,
ele me derrubaria”.
E deu outra gostosa risada. Morreu amigo do Carlos Lacerda. Aliás,
quando falava nele, sempre dizia Carlos, Carlos mesmo, nem acrescentava
Lacerda. Referia-se a ele com extrema simpatia, contava muita história,
a ponto de constranger a gente, de constranger à própria mulher,
D. Sarah, que nunca perdoou os ataques ferinos, destruidores, terríveis,

336
que o Lacerda fazia a ele, da mesma maneira como fez ao Dr. Getúlio
Vargas.
Dentre muitas das frases que Juscelino cunhou, uma ficou como a
mais conhecida: “Deus poupou-me o sentimento do medo”. Um irmão
de Vinicius Dourado e filho do desembargador Autran Dourado, ambos
amigos saudosos, escreveu um livro, “Gaiola Vazia”, nele se outorgando
a autoria da expressão. Quando Genival leu o livro, hoje nem de longe
lembrado, causou-lhe pena o texto. O autor, também já esquecido, tivera,
quando trabalhou com JK, a acolhida que este dispensava a todo mundo,
mas pretendeu-a mais calorosa. Mero auxiliar de Juscelino, se dizia criador
da frase. Para agravar sua jactância, no livro se referiu ao grande Armando
Ziller de forma pejorativa, pretendendo diminuir-lhe o brilho.
Dentre outras coisas, chamou-o semianalfabeto. Ora, toda a geração de
jovens esquerdistas do tempo, lembra-se de Armando Ziller como o seu
preceptor maior, o mais inteligente e preparado.
– Sinceramente, gostaria de ser tão semialfabetizado quanto foi o
Armando Ziller, uma das pessoas mais fascinantes e cultas que conheci
em minha vida. Eu era rapazola nesta capital, não perdia as assembleias
do Sindicato dos Bancários no velho teatro provisório, o muito conhecido
Francisco Nunes, chamado pelos mais irreverentes de Tatu do Otacílio.
Lá, encantava-me o poder de liderança do Armando, a seu talante fazendo
a plateia rir ou se indignar. Grande deputado, respeitadíssimo por seus
colegas, dele a Assembleia editou, faz algum tempo, trabalhos parlamentares,
exemplos da memória melhor da política mineira. Fiquei indignado
e escrevi ao ‘Estado de Minas’, em veemente protesto à falsa paternidade
da frase e ao contraste entre a figura realmente melancólica do ignorado
autor e a do talentoso, fulgente e corajoso Armando Ziller.
Volta a falar de JK:
– Juscelino tinha coisas interessantíssimas, e talvez a coisa mais interessante
dele, e nele, fosse a espontaneidade, a simplicidade com que
ele colocava as coisas. Era um homem realmente extraordinário, foi
quem mais marcou minha sensibilidade política. Quando do falecimento
do José Maria de Alkmim, o então presidente da república, que era o Geisel,
mandou como seu representante o Armando Falcão, Ministro da Justiça,
e estávamos enfileirados no velório, Juscelino, Renato Azeredo,
Carlos Murilo e eu, praticamente pisando numa sepultura. É o tipo da
coisa que profundamente me constrange, mas eram tantas as pessoas ali

337
presentes que não havia como, eventualmente, deixar de pisar em algum
túmulo. Quando foi acabando o sepultamento e nós íamos nos retirando,
o Falcão gritou: “Juscelino, Juscelino, espera um momento, eu quero lhe
apresentar o seu maior fã, meu filho”. Quando vimos que ele ia se aproximar
de Juscelino, os três instintivamente nos afastamos, porque não
queríamos contato com ele. Mas Juscelino recebeu tudo muito festivamente,
como era de seu estilo. Quando o Falcão se retirou, Juscelino
ficou lá. Na saída, deu-nos uma bronca tremenda:
“Incivilizados, como é que vocês fazem uma coisa dessas, ele viu
que vocês são meus amigos, que se retiraram para evitar contato com
ele”.
– Mas, presidente, eu disse, esse cara, com o senhor, talvez tenha
sido o maior filho da puta do mundo.
Aí Juscelino contrapôs: “grande vantagem. Um filho da puta a mais,
um filho da puta a menos na vida da gente não tem nenhuma importância,
e vocês criando esse caso”.
Carlos Heitor Cony foi declaradamente opositor de JK antes de conhecê-
lo bem. Encontramos, num de seus livros, O ATO E O FATO, Objetiva,
2004:
“No momento em que escrevo esta crônica, ameaçam uma nova
lista de cassados. Para encabeçá-la – afirmam – surgiu o nome de um expresidente,
o Sr. Juscelino Kubitschek. Independentemente do meu voto
e do meu juízo a respeito do Sr. Juscelino, percebo a indisfarçável manobra
do udenismo que deseja limpar o terreno, afastando um candidato
incômodo. (...) O governo JK abriu imensas perspectivas para o Brasil.
Rasgou o Oeste – uma de nossas metas encravadas há séculos, desde que
os bandeirantes se aposentaram para sempre. Não se rasga uma região
interiorana com marchas pela família, terços e procissões. Abre-se a
facão, a foice, a trator. O Oeste norte-americano foi rompido e conquistado
na base do bangue-bangue. O tempo das diligências custou sangue
e pólvora, mas a História absolve às vezes o sangue e a pólvora. Não absolve
nunca é a estupidez e a tirania. Sou pela manutenção dos direitos
políticos do Sr. Juscelino, para ter o prazer de não votar nele”.
Ainda, de Cony, em crônica publicada na Folha de S.Paulo, em 28
de dezembro de 2010, o seguinte excerto:
“No seu último dia de governo, JK preparou-se para ir à cerimônia
de posse do novo presidente, Jânio Quadros. Não ocupava mais o palácio,

338
mas uma suíte do Hotel Nacional. Contemplava a cidade que inaugurara
havia pouco.
... Nunca antes neste País houvera um presidente como JK. No final
daquela tarde, ao tomar o avião deixando Brasília, levado por uma multidão
que o consagrava, Afonso Arinos fez o comentário: – Isto não é um
ocaso, é uma alvorada.”
A porosidade humana de JK foi sempre clara, sempre patente. Como
prefeito de Belo Horizonte, como governador, depois presidente, no episódio
de Jacareacanga, e tantos outros, inumeráveis. Dela temos exemplos
até mesmo durante as agruras da perseguição política.
O mesmo Cony, que herdou, no Edifício Manchete, o gabinete onde
Juscelino fez a edição e grande parte do texto final de seus livros de memórias,
mostra isso de forma singelamente magnífica: “Lembrei a alegria
de JK quando lhe mostrei o primeiro exemplar de suas memórias. Levou
o livro ao nariz e disse que adorava o cheiro da tinta de impressão. Mandou
para Geisel esse primeiro livro”.
Genival, prosseguindo:
– Fiz várias viagens com Juscelino, muitas a convite de estudantes,
para dele ouvirem palestras. Assim foi da primeira vez em que fomos a
Montes Claros e que marcou muito sua sensibilidade, porque foi recebido
por todas as autoridades da cidade naquela ocasião. O Antônio Lafetá
Rabelo, que era meu adversário político, prefeito eleito pela Arena, fez
questão de participar da solenidade em que ele, Juscelino, se pronunciou,
e de estar também no jantar que lhe oferecemos num restaurante de lá.
Logo após as vitórias do Dr. Israel Pinheiro e do Dr. Negrão de Lima,
sobretudo devido a elas, houve a extinção dos partidos políticos para dar
lugar à Arena e ao MDB. Até então, o grande chefe político do PSD em
Montes Claros era o Dr. Alfeu Gonçalves de Quadros que, adoentado e
não podendo comparecer, mandou como sua representante minha querida
amiga Suzana Prates Quadros. Então, o quadro de presença e de respeito
à figura de Juscelino se apresentou completo. Às homenagens compareceu
o então reitor da Fundação Universitária de Montes Claros, Dr. João
Vale Maurício, médico. Juscelino foi recebido igualmente pelo presidente
da Câmara de Vereadores e ainda por dois dos, na ocasião, três juízes de
Montes Claros. Ainda a registrar as presenças do bispo diocesano e dos
representantes do Ministério Público local, que tinha à frente o Dr. Jair
Renault de Castro. Aquilo sensibilizou profundamente JK, devido ao

339
comportamento grandioso dos montes-clarenses, que não fugiram dele,
souberam comparecer naquele momento difícil de sua vida. Outro episódio
que me vem da singeleza de Juscelino é que, quando contava as
agruras e dificuldades de D. Júlia e bem assim de D. Naná para criá-lo,
finalizava sempre ressaltando: “Domingo, lá em casa, tinha galinha assada.
Então, dava na gente uma fome, uma vontade de comer tudo, mas
não podia, tinha que sobrar para a segunda-feira”. Naquela ocasião, o
costume era dizer “galinha assada”, não tinha esse negócio de falar
“frango assado”. Então, ele falava que tinha galinha assada. Em 1971,
acompanhando Juscelino a Juiz de Fora, onde já se encontrava o Tancredo,
viajamos Renato Azeredo, José Luiz Bacarini, Carlos Murilo e eu,
além do motorista Queluz. Juscelino tinha sido convidado por um grupo
de médicos para fazer uma palestra. Lá, os médicos e os estudantes de
medicina o receberam num clima de muita animação, mas ficamos sabendo
que a Câmara Municipal recusara suas dependências para o pronunciamento.
Aquilo causou um grande constrangimento porque, na
ocasião, eram filiados ao MDB, tanto o prefeito da cidade quanto o presidente
da Câmara Municipal, de cujo nome não me recordo. Um dos
fundadores do MDB, que viria a ser nosso governador, Itamar Franco
(falecido em dois de julho de 2011), e que antes fora também prefeito da
cidade, omitiu-se totalmente neste triste episódio. Não conseguimos que
Juscelino falasse na Câmara Municipal. Improvisamos alto-falantes do
lado de fora da Associação Médica, que tinha um auditório muito pequeno,
de vinte e poucos lugares, e lá é que o presidente pode se dirigir
aos médicos juiz-de-foranos, aos estudantes e ao povo da cidade em
geral, algo que marcou muito a sensibilidade dele e a nossa também. Ele
sempre comparava essas duas visitas, a Montes Claros e a Juiz de Fora,
aproveitando para elogiar a elegância do cidadão montes-clarense e sua
vocação para “bater castelo” como se referia a cantar serestas, em alusão
ao fato de os cantores peregrinarem pelos castelos em suas serenatas.
A propósito da expressão “bater castelo”, nunca esquecerei a passagem
de aniversário meu que coincidiu com a inauguração do Brasília
Palace Hotel, primeiro hotel da Novacap, muito próximo ao palácio residencial
da presidência da república e que, anos depois, pegaria fogo.
Os bacharéis de Direito formados em 1958 fôramos convidados pelo presidente
para jantar lá. Afinal, ele dizia, seríamos nós os advogados que
iríamos militar no Supremo Tribunal Federal, como de fato aconteceu.
Aliás, todas as vezes em que eu me dirigia ao Supremo, para fazer sustentação
oral, ou mesmo para acompanhar qualquer assunto de interesse,

340
sempre me vinha à mente a lembrança do que ele disse por ocasião do
lançamento da pedra fundamental: “vocês é que vão inaugurar, porque
aqui é que vão militar. O lugar de vocês será aqui, esta será a sua segunda
casa, como grandes advogados mineiros no futuro”.
Estávamos hospedados no citado Brasília Palace e ainda chegavam
os móveis que faltavam. Éramos vinte e dois rapazes e três moças, que
a nós se juntaram, para ajudar o pessoal a carregar cadeiras, mesas, etc.
Num mutirão tremendo, acabamos de botar o mobiliário para dentro. Isso
tudo à noite, num três de maio de 1958. No dia seguinte eu estaria completando
vinte e cinco anos. Já tínhamos almoçado com o presidente no
“Catetinho”, quando ele nos convidou para jantar no hotel, que seria
inaugurado naquele dia. Detalhe de que não me esqueço foi Juscelino
fazer circular um bilhetinho que dizia: “Cuidado com o peixe. Não coma,
está estragado. Passe para a frente”. Tais zelos eram muito próprios dele,
e esse recadinho de próprio punho retrata bem sua simplicidade. Lamento
profundamente não ter guardado o bilhete que, na correria do jantar, passou
de mão em mão para que ninguém caísse na tentação de comida estragada,
ainda mais peixe. O episódio, por seu caráter, deve ser
registrado.
Então cheguei perto dele e disse: presidente, daqui a duas horas estarei
completando 25 anos. Vamos “bater castelo” nas obras do Palácio
do Planalto?
Durante o jantar ele, rindo, vira-se para mim, que estava em pé atrás
dele e, piscando, falou: “ah, vamos, vamos bater castelo. Antes, vê se bota
o homem aí para dormir que saímos, ainda mais que é seu aniversário”.
O ‘homem para dormir’ era o então Presidente Stroessner, do Paraguai,
assentado à direita de Juscelino. Claro que dei um jeito de me assentar
perto do Stroessner. Fui me ajeitando, mudando de lugar, e daí a
pouco estava bastante próximo dele e do segurança. Stroessner tinha nas
mãos um copo de whisky, que enchi até a borda, cuidando que ficasse
sempre assim. A todo instante, completava-o. Com pouco menos de uma
hora, o segurança teve de levá-lo, inteiramente grogue, para o apartamento.
Descartamo-nos dele e fomos todos cantar no Palácio Alvorada.
Foi para mim um negócio inolvidável, marcante. Fazendo 25 anos, passei
um aniversário maravilhoso ao lado do presidente, cantando serestas, ou
como ele dizia, “batendo castelo”.
Juscelino ingressara efetivamente na política em 1933, como secretário

do interventor em Minas Gerais, Benedito Valadares. Ficara amigo

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dele quando médico no front da revolução constitucionalista em Passa
Quatro, no Sul do estado. Depois do batismo político como deputado federal
no Rio de Janeiro, entre 34 e 37 com o Estado Novo, retorna a Belo
Horizonte, decidido a se dedicar exclusivamente à Medicina. Contudo,
em 1940, aceita convite de Benedito e se torna prefeito da capital, inaugurando
um novo estilo de governar, cujo marco seria a construção, em
tempo recorde, do complexo arquitetônico da Pampulha, ideado pelo
gênio de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, inaugurado em 43. Ficou conhecido
em Belo Horizonte como o “prefeito furacão”. Todas as grandes
avenidas da capital foram realizações suas. Foi sempre fissurado em prazos.
Todas as obras tinham cronograma cuja execução ele cobrava. Era
considerado imbatível nas eleições de 65. Como pré-candidato, as pesquisas
lhe davam mais de 65%. Por ocasião do centenário de seu nascimento,
em novembro de 2002, a Gazeta Norte Mineira publicou, sob o
título “Urna Memorial”, suplemento especial comemorativo. Outros jornais
deram também notas a respeito. Vejamos no JB On-line:
RIO – Um cilindro com informações sobre o presidente Juscelino
Kubitschek será colocado na base da estátua que a prefeitura de Montes
Claros inaugurará amanhã. O mais curioso é que este cilindro com informações
sobre a Era JK, como ideias, preferências e estilo, só será
aberto em 2102, por ocasião das comemorações do segundo centenário
de Juscelino Kubitschek. No cilindro haverá ainda um CD com as músicas
preferidas de Juscelino. Além da estátua de JK na Praça dos Jatobás,
um grupo de seresteiros percorrerá, também amanhã, as três
cidades que JK considerava o polo seresteiro do Norte de Minas: Diamantina,
Bocaiuva e Montes Claros. Segundo um dos coordenadores
do evento, o ex-deputado Genival Tourinho, amigo pessoal de JK, este
era um projeto que o próprio Juscelino planejava realizar.
– Juscelino gozava da justa fama de, entre outras coisas, jamais esquecer
fisionomias e nomes. Era de fato um privilegiado, “um memorião”.
Aquilo intrigava, não era de se acreditar em memória tão
prodigiosa. Eu então quis saber o segredo daquela coisa extraordinária.
Um dia ele me contou.
Perguntei:
– Presidente, um fato que incomoda todo político é esquecer o nome
do correligionário, quando ele fica apertado pela memória. Como é que
o senhor escapa disso?

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“Olha, quando chego numa reunião, começo a identificar as pessoas
e vejo alguém de quem não me recordo ou cujo nome não estou lembrando,
eu o chamo em particular e falo com ele: amigo, você vai me
desculpar, mas me deu um branco aqui tremendo. Você imagina o absurdo,
esqueci o seu nome, como é mesmo o seu nome? Então o sujeito,
muito sem graça, diz: ‘fulano de tal’. Fico esperando. Minutos depois,
quando ele está enturmado, vários amigos em volta, chego e, já lhe sabendo
o nome, dou um tapa no ombro dele: ô fulano, você não me aparece
mais, não respondeu àquele negócio de que te falei, isso e aquilo, e
começo a tratá-lo com a maior intimidade. Então ele, que estava contrafeito
por eu lhe haver esquecido o nome, se sentia valorizado. Aí eu percebo
que ele transparece felicidade e esquece que minutos antes eu
perguntava o nome dele”.
Isso Juscelino me contava. Apesar de tudo, muitas vezes aconteceu
de ele necessitar de ajuda e, como já disse em outra oportunidade,
eu o auxiliava, falando: fulano vem se aproximando, beltrano
passou ali, agora vem sicrano. Em outras ocasiões, eu mesmo adiantava
o expediente. Quando via alguém se aproximar, dizia: presidente,
fulano de tal está chegando. Então ele, com aquele exuberante abrir
de braços: ”me dá um abraço, fulano”. E espichava a conversa que
queria, na maior das familiaridades. Aprendi com ele, faço muito
disso até hoje. Quando não me lembro do nome de uma pessoa, eu a
chamo de lado e dou o golpe do joão-sem-braço, conforme aprendi
com Juscelino. Depois, muitas e muitas vezes, eu repetiria a mesma
coisa com Tancredo.
Também muito destemido, Juscelino era homem de muita coragem,
não era de se acovardar com palhaçadas de militares e exibição de revólveres,
como aconteceu quando do regresso do primeiro exílio. As
fotos estão aí, mostrando os militares tirando as armas da cintura e apontando
para ele, para D. Sarah, para as filhas. Era um homem de profunda
coragem, e nunca se lhe destacou isso. Quando asseverou a Jânio Quadros,
seu sucessor, que partiria para a porrada caso ele investisse contra
sua honra pessoal no discurso de posse, eu não tenho dúvida nenhuma
de que o faria. Na vigência da ditadura, submetido a inúmeros e sucessivos
vexames, num dos muitos episódios que relatou para a gente, conta
como se recusou a responder às perguntas feitas em tom de forçado autoritarismo
por um tenentezinho qualquer:
“Como é que é ‘seu’ Juscelino, você vai responder ou não às perguntas?”

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Então, com a altivez que em todos os momentos teve, retrucou:
“Vou, no momento em que o senhor me tratar com a dignidade e o
respeito que mereço, na condição de ex-presidente da república. Aí, podemos
até ficar aqui dez, doze, vinte e quatro horas que sejam, mas quero
respeito”.
A tamanho grau chegou a pressão que, para torná-la menos percebida
do povo que o adorava, resolveu-se conceder-lhe passaporte e visto
para sair do País, o que foi feito na surdina. Em meu relacionamento com
JK, após sua saída do poder, recordo-me de algumas coisas que evidentemente
foram resguardadas nestas memórias. Aqui e ali, entretanto, me
permiti algumas inconfidências, mostrando facetas menos conhecidas do
grande brasileiro. No todo, tudo, tudo o que contei, foi absoluta e integralmente
verdade, mas forçosamente houve omissões, propositais ou
necessárias algumas, outras apenas referentes a assuntos descartáveis.
Juscelino, e isso aliás nunca foi segredo, tinha – não digo antipatia,
mas não suportava o blá-blá-blá de Brizola. Este, quando governador do
Rio Grande do Sul, vez por outra escrevia cartas quilométricas e mesmo
impertinentes ao presidente, que confidenciava sempre aos mais chegados
ser alérgico à voz de Brizola, ficando “mortificado” quando este lhe
pedia audiência. Sabia que seriam horas e horas de conversa maçante e
enfadonha, uma lenga-lenga, afirmava. A respeito de seus encontros com
Brizola, e isso ele me disse, não uma única vez, mas três ou quatro, que
sempre que lhe era inevitável despachar com o então governador do Rio
Grande do Sul, tomava pelo menos dois calmantes antes e, apressando o
final da audiência, enviava-o para o José Maria de Alckmim. Rindo, dizia
que afinal de contas, quem tinha melhor conhecimento dos gaúchos era
o José Maria, porque havia morado no Sul por dois ou três anos e, portanto,
já tinha aprendido a se entender com eles.
Aqui vai outra revelação que muitos quererão contestar, mas vivos
ainda estão para atestar-lhe a veracidade, o Carlos Murilo e o coronel
Affonso Heliodoro dos Santos. Dada ocasião, eu conversava com o Presidente
Juscelino, quando falei que estaria no dia seguinte indo a Goiânia,
profissionalmente. Eis que, há muitos anos, antes da criação da Rede Ferroviária
Federal, houve a Estrada de Ferro Goiás, também conhecida por
Ferrovia Minas-Goiás, que ligava Araguari a Goiânia, capital daquele
estado. Seu presidente era o coronel Mauro, que viria depois a ser governador.
Eu era muito solicitado pelos ferroviários de Araguari por causa
da chamada dupla aposentadoria dos ferroviários nomeados pela União
que, sendo contribuintes do Iapfesp, recebiam uma aposentadoria da

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União Federal e outra do Iapfesp, esta pelo prazo de 35 anos de contribuição.
Na súmula do Supremo Tribunal Federal, dos doze trabalhos ali
listados, referências da súmula, cinco são meus. Então, de certa maneira,
sou o pai da súmula do Supremo que garantiu dupla aposentadoria a eles.
Como tinha umas questões deles naquela capital, volta e meia ia lá.
Juscelino me perguntou: “Você vai a que horas?”
Respondi: amanhã, num voo à tarde. Ele estava no escritório que tinha
na Manchete, Rua do Russel, e continuou: “Então você poderia passar aqui,
vai me fazer o favor de levar uma carta para o Pedro Ludovico Teixeira”
(chefão político do PSD, que mudou a capital para Goiânia, uma figura
mitológica da política brasileira e goiana). “Vai levar em mãos e entregar
só a ele.” Eu, umas três horas antes do embarque, fui à Rua do Russel. A
carta, que o presidente me entregaria aberta, já estava pronta. Fechei o envelope
e embarquei. Tão logo me desincumbi, no fórum, das tarefas que
ali haviam me levado, marquei passagem para a noite. Passei na casa do
ex-governador Ludovico mais ou menos às l6h30 ou 17 horas, já o tinha
avisado. Combinamos um horário. Fui muito bem recebido por ele, uma
figura impressionante, um homem alto, que usava suspensórios largos, de
duas ou três cores, um homem fino, mas que a gente percebia resoluto,
bravo, decidido. Disse a ele: olha, sou portador de uma carta que o presidente
lhe mandou. De imediato, ele me perguntou: o senhor tem conhecimento
do teor da carta? Respondi: não, o presidente delicadamente a
entregou aberta e eu, incontinenti, conforme é hábito nosso – em Minas e
acredito que também aqui, fechei o envelope. Ele: ‘vamos ver esta carta’.
Leu-a, mostrou alegria com o recebimento e, pouco depois, disse:
“Se o senhor foi portador dessa carta para mim, é porque é homem de
confiança do presidente e passa a ser também homem de minha confiança.
Gostaria que levasse minha resposta”. Disse a ele que não poderia
esperar, estava com o voo marcado, sairia para Brasília no avião de seis
e pouco, sete horas, por aí. Respondeu então que iria conseguir outro
portador, também de confiança, para levar a resposta ao presidente.
Encerrou: “Diga a ele que dez mil homens e dez mil carabinas eu
não tenho condições de arregimentar. Entretanto, no momento em que
ele precisar, mil carabinas e mil homens eu movimento para marchar
sobre Brasília”. Despedi-me, havia sido recebido na biblioteca e me recordo
perfeitamente dela, com muitos volumes. Vi, assim do lado esquerdo
da porta da sala, uma coleção de livros de capa verde. Ele pegou
um deles, o primeiro da fileira, e dentro colocou a carta, para respondêla
no dia seguinte.

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Anos depois, ainda em Brasília, fiquei amigo do filho do ex-governador
Ludovico, o coronel Mauro, e contei-lhe o episódio, do qual ele
não tinha conhecimento. Falei também onde a carta tinha sido guardada.
E o Mauro me assegurou: “Quando eu voltar à casa de meu pai, vou
olhar. Ele era muito meticuloso. Se, após responder, papai botou a carta
nesse local, ela estará lá”. Perguntou-me se o pai respondera. Afirmei
que sim, tanto que o presidente me falou que a resposta fora idêntica ao
recado que ele mandara por meu intermédio. Encerrou o Mauro: “Então
vou encontrá-la”. Efetivamente, dois ou três meses depois, todo alegre,
ele me procurou para dizer que tinha encontrado a carta que seu pai recebera.
Agora, o que fizeram com ela, não sei.
Definitivo, é Marco Aurélio Baggio, psicanalista e membro da Sociedade
Brasileira de Médicos Escritores, em artigo sobre Guimarães
Rosa, a 26 de agosto de 2001, no jornal Hoje em Dia:
“O dever nos conclama a não deixarmos perder a hora e a vez, tal
como deixamos escapar das santas mãos de Santos Dumont a prioridade
da invenção da aviação ou, por pura inveja e mesquinharia, impediu-se,
por duas vezes, que Carlos Chagas ganhasse o prêmio Nobel. Ou, ainda
hoje, que permaneça a exponencial figura do maior estadista brasileiro
de todos os tempos, o diamantinense Juscelino Kubitschek de Oliveira,
indevidamente imersa na vala comum dos grandes brasileiros”.
Genival fecha:
– Não quero, sequer me posso permitir, em memória da convivência
inesquecível que tive com Juscelino, o homem, o cidadão e o político,
encerrar este depoimento sem acrescentar que, recentemente, em Diamantina,
quando das comemorações do aniversário dele, a Maria Estela
me relatou que seu pai lhe contava sempre da amizade que tinha por mim,
traduzida num afeto quase paternal.