sábado, 31 de agosto de 2013

A FIAT EM MINAS


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Trazer a Fiat Automóveis para Betim galvanizou governo e empresariado
de Minas, ante a possibilidade de a fábrica ir para outro estado.
Foi o maior acontecimento do chamado “milagre mineiro” na
abertura do mercado a investimentos estrangeiros. Em 72, o Presidente
Médici, em visita oficial a Minas, recebeu documento assinado por
várias entidades de classe, expressando confiança na localização da
Fiat aqui, ao lado de outras empresas importantes, como a Krupp, por
exemplo. O anúncio oficial da vinda foi feito em 73, na sede da Fiemg
(Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais). Incentivos adicionais,
como subsídios e facilidades especiais, foram dados de acordo
com os interesses a partilhar. O estado subscreveu quase quarenta e
seis por cento do capital e avalizou parte dos empréstimos necessários
à implantação da fábrica, garantindo a realização das obras de infraestrutura.
A Fiat conseguira isenção de impostos municipais e de parte
do ICM (atual ICMS) até 85, numa cláusula corrosiva do erário que,
absurda e imoral, exigia do estado reembolsar a Fiat de “todo e qualquer”
prejuízo resultante do empreendimento. Foi anulada em 75, no
governo Aureliano Chaves, por imposição do secretário da Fazenda.
No processo de aceleração industrial do estado, a simples chegada da
Fiat era uma festa, tamanha a sua importância. Desde logo, a infraestrutura
geraria muitos e imediatos empregos, com mão de obra direta
e indireta, novos investimentos, e criação de polos comerciais. O Segundo
Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND, lançado em 74
pelo governo Geisel, recomendava enfaticamente descentralização das
indústrias, grandemente concentradas no Sul do País. Essa política recebeu
em Minas apoio imediato de governo e empresários. Vinha a
calhar com o empenho pela instalação da indústria de autopeças. Não
havia como discordar da importância da Fiat para a região. Um ponto
porém era polêmico: os limites da participação do estado no empreen-

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dimento. Tema logicamente abordado na Câmara Federal. Denunciando
o acordo que o então interventor Francelino Pereira assinara,
Genival se expressou:
– O fraco, pretendendo ser forte, impôs à Assembleia mineira, no
final do ano passado, a aprovação ao segundo aditamento de interesses
entre o Estado de Minas Gerais e a Fiat SPA (Società per Participazzione)
– e o segundo acordo de acionistas da Fiat Automóveis S.A. –
Fiasa, instrumentos que, na realidade, deveriam ser chamados de
“acordo em favor dos interesses da Fiat à custa do erário de Minas Gerais”.
Começou o sr. Francelino Pereira por humilhar a Assembleia
mineira, dando-lhe prazo de trinta dias para a aprovação da mensagem
contendo o projeto de lei, quando o caminho legal seria o da resolução,
na forma do Art. 31, item XX, da Emenda Constitucional nº 9, que inclui
na competência privativa da Assembleia “autorizar ou aprovar
convênios ou acordos com entidades públicas ou particulares”. Ora,
como a resolução do Francelino não poderia fixar prazo, o expediente
foi o de burlar a Constituição mineira, apelando para o projeto de lei.
Certamente que o embuste praticado se constitui no maior arbítrio já
cometido contra o corpo legislativo mineiro (...) Consequentemente
foi a Assembleia chamada, em clima de pressão, apenas para coonestar
a ilegalidade. Se (o governo) fez dois depósitos sem autorização do
legislativo, com o mesmo desembaraço poderia fazer os demais que
porventura se considerassem inadiáveis. Poderia, é certo, usar alguma
forma menos incorreta de injetar recursos na empresa como, por exemplo,
emprestá-los através de algum organismo capacitado, em lugar de
fazer antecipações de um aumento de capital que ainda não estava
aprovado ou autorizado nem mesmo pela assembleia geral da Fiasa e
menos ainda pela Assembleia Legislativa do estado. Como quer que
seja, porém, já estava inaugurado o caminho da transfusão clandestina
de recursos na medida que bastasse para aguardar-se a decisão do
poder legislativo. Claro, então, que o problema da urgência era contornável.
Alegando a inequívoca inconstitucionalidade da participação de
Minas em “vultoso e sempre crescente capital de risco”, apresentou tabela
demonstrando a evolução participativa do capital do estado no da
Fiasa, desde 73, ano de constituição da Fiat, até 79. Nesse último, a participação
corresponderia a um terço da receita tributária de 78. O fato,
contra a liberdade de mercado, constituía flagrante discriminação em

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favor da Fiasa. De um lado, o estado se comprometera a participar do
capital de risco com US$ 71,499 milhões, mas já havia colocado no empreendimento
exatamente US$ 208 milhões e 513 mil dólares, sem qualquer
explicação à Assembleia Legislativa. A isso não obrigava o contrato
de 1973. De outro lado, jamais havendo o estado assim procedido relativamente
a empresas nacionais, o fato se tornava imoralmente discriminatório.
Seguiu-se forte troca de apartes, com o deputado Bonifácio
Andrade, o Andradinha, insistindo em que o orador era contra a Fiat em
Minas e, portanto, contra empregos e operários mineiros. Genival retrucou
dizendo que não era assim, nem se tratava disso. Era a favor de
Minas, mas contra a instalação de multinacionais que onerassem o orçamento
do estado em mais de um terço do que arrecadava. Analisando em
detalhes as cláusulas do acordo de comunhão de interesses firmado, denunciou
a inconstitucionalidade da participação minoritária do estado e
reiterou críticas ao governo mineiro:
– E o governo tornou mais incorreto o próprio comportamento,
quando estabeleceu o prazo mínimo possível de tramitação do projeto
de lei nº 229/79, impossibilitando à Assembleia, desprovida de assessoria
especializada no setor automobilístico, aprofundar suas investigações e
análises até que pudesse descobrir que lhe estavam impingindo afirmações
falsas. Está aí aberto o caminho para uma ação popular capaz não
só de evitar novas sangrias no erário de Minas mas, também, de recuperar
recursos preciosos e, principalmente, de moralizar a ação governamental
em meu estado.
(DCN, Brasília, 11/abr/80, págs. 1858/62).
A Fiat, pela quarta vez, realizava subscrição de capital. A possibilidade
de novo acordo com o governo provocou veemente protesto
de Genival, prenhe de razões. O relatório da diretoria da empresa, relativo
a maio de 81, apontava enormes prejuízos operacionais. Teria
o estado, de novo, de subscrever capital, a fim de cobrir prejuízos
operacionais.
– O primeiro aporte, sr. presidente, até posso entender como estímulo,
até mesmo para acabar com a frustração dos mineiros, que queriam
produzir um carro mineiro. Mas não posso compreender, definitivamente,
a absorção automática de todos os prejuízos operacionais da Fiat, através
da subscrição de ações pelo estado de Minas Gerais. Não desejo, como
aqui se falou maldosamente, que dez mil trabalhadores sejam desempregados.
Desejo que a Fiat proporcione dez, quinze, vinte, trinta mil em-

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pregos, desde que atendendo ao princípio que norteia o regime capitalista:
ela que arque com seus riscos, ela que arque com aquela regra básica
do capitalismo, ou seja, de que todo investimento traz em si um risco.
Que não recorra ela, sistematicamente, às arcas do estado; esse posicionamento
é profundamente imoral e, a essa altura dos acontecimentos, já
me leva seriamente a duvidar da honorabilidade pessoal do governador
de Minas e de seu secretário da Fazenda.
(DCN, 24/abr/81, págs. 6314-16)
Mais de quarenta anos depois, ele mesmo comenta:
– O problema da Fiat tem que ser entendido como puramente momentâneo,
porque ela é hoje essa grande empresa que dá emprego, recolhe
tributos e recriou Betim, já a quinta maior cidade do estado. Mas,
quando veio para Minas, não era bem assim. Francamente, a Fiat foi feita
única e exclusivamente com capital do estado de Minas Gerais. Eles não
trouxeram nada de lá, apenas um monte de máquinas velhas, que depois
foram substituindo, com o dinheiro de Minas. Naqueles caixotes imensos
que vinham para os altos funcionários, para a direção da Fiat, havia contrabando
de tudo o que se possa imaginar, porque passavam livremente.
O que questionei naquele discurso foi exatamente o modo de formação
da Fiat. Depois, ela se transformou numa grande empresa, mas no momento
em que a critiquei, o episódio a nu era esse: a Fiat, que estava se
estabelecendo em Minas Gerais, estava crescendo aqui apenas com capital
mineiro. Dinheiro, eles não trouxeram.
Aproveitando, comenta ainda o caso indecoroso que foi o da Transit,
empresa mineira de propriedade de Hindemburgo Pereira Diniz. No livro
“Uma Sentença de Morte”, Hindemburgo denunciara o Ministro do Planejamento
e o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico,
apontando-os como responsáveis pelo fechamento da empresa.
Antes de entrar no âmago da questão, Genival comparou a legislação do
ombudsman (oficial do governo que recebe e investiga queixas de particulares
contra desmandos ou desatenções oficiais) – instituição típica
dos países nórdicos, fiscal do povo frente à eventual arbitrariedade de
órgãos públicos – à do Ministério Público brasileiro. Concluiu: longe de
servir de guardião da constituição como fiscal do povo junto às elites, o
Ministério Público era um órgão frágil.
– No discurso em que fiz referência ao tratamento dispensado ao
Hindemburgo, o que eu queria mostrar é que nós precisávamos de um

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Ministério Público sem peias, atuante, que andasse com suas próprias
pernas, que tivesse independência, inclusive econômica, que fosse
como esse que temos hoje, muito atuante, algumas vezes exagerando
um pouco, talvez até em consequência dos muitos anos em que
aquele órgão era amplamente manejado pelos políticos, que faziam
dele o que queriam. Eu, no meu discurso, talvez tenha, por primeira
vez na Câmara Federal, feito a apologia de um Ministério Público
forte, como veraz defensor do interesse popular, fiscal da lei, não
importando se essa lei se aplicava a preto, branco, puta, padre, políticos,
irmã de caridade ou cafetina. Era isso que eu queria. Que
atuasse com absoluta isenção, com absoluta independência. Naquela
ocasião, infelizmente, o Ministério Público ainda não tinha sido contemplado
com as prerrogativas que lhe deu a Constituição Cidadã,
em 1988. Ilustrando, no Araguaia, os padres que queriam a reforma
agrária legalizando a situação dos posseiros, padres que preconizavam
um tratamento justo para os sem-terra da época, foram sumariamente
presos com eles, sem qualquer respeito à lei, apenas
atendendo a requerimento de um promotor público daquela região.
Muito dócil (o Ministério Público) quando se tratava de processar e
condenar os pobres e de levar a penas exageradas os treze posseiros
do Araguaia e os dois padres franceses “que nada mais faziam senão
abrir a cabeça dos homens que lutam e têm direito à terra”, fazia ouvidos
de mercador quando violava direitos básicos do cidadão, como
recentemente em Belo Horizonte. Quanto ao livro do Hindemburgo,
a meu ver, fazia a mais dramática denúncia de toda a história recente
de nosso estado.
Na tribuna, fora taxativo:
– Deitou-se verdadeira cortina de silêncio. Até a oposição se calou.
Pois bem. Deixei trabalhos, a campanha e tudo o mais, em favor de meus
companheiros para dizer que não, a oposição não se calara, ainda que falasse
através de um deputado que não pode sequer pleitear o que é. A
oposição, vai manifestar-se, vai dizer ao Ministério Público da União
que deste livro tem que sair uma denúncia; deste livro tem que sair uma
denúncia contra pelo menos um dos dois ministros de estado, profusamente
citados, porque um deles declara ser o outro corrupto, que o outro
levou propina, que o outro, na expressão do livro, “contou horrores de
seu companheiro”. E, no entanto, tudo fica como se não houvesse nada.
Até a própria imprensa silencia, sr. presidente. Afinal de contas, qual a
razão de existência da imprensa, se não o dever que ela tem de bem in-

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formar o povo? Mas vamos ler alguns trechos deste livro. Vamos ver o
que era, inicialmente, a Transit, no Brasil, antes de intervenção da Telebras.
(DCN, 20/ago/82, págs. 6739-44).
Cuidou esclarecer que não endossava acusações, limitava-se a transmitir
o conteúdo do livro. Afinal, “gato escaldado tem medo de água
fria”. A leitura de trechos demonstrava o estrangulamento paulatino –
pela ação das multinacionais, daquela empresa nacional pioneira no
campo da microeletrônica. Falou também da transcrição de conversas telefônicas
e do envolvimento de ministros como Delfim Netto e Camilo
Pena na trama que terminaria levando a Transit à falência.
– Penso que foram basicamente interesses americanos e paulistas
que acabaram com a Transit. Não queriam a concorrência da Transit nos
altos negócios que tinham em São Paulo. Acusavam o Hindemburgo de
ser visionário, sonhador, afirmavam que gastava milhões e milhões, que
sua casa tinha garçons, campos de golfe, etc. Mas como iria trazer aquelas
pessoas todas do mundo para Montes Claros, senão colocando as coisas
que os homens gostavam de fazer? Se os homens gostavam de jogar
golfe, fez um campo de golfe. Se gostavam de jogar tênis, fez várias quadras
de tênis. Mas, basicamente, a Transit foi sacrificada em função de
interesses dos Estados Unidos e do consórcio de grupos empresariais de
São Paulo. Não podiam admitir uma indústria tecnologicamente de
ponta, como era a Transit naquela ocasião. E ela, afinal de contas, viu
aquele quadro lamentável de ter a sede arrombada, espelhos furtados e,
melancolicamente, fechou suas portas. Ainda hoje seria a maior indústria
de tecnologia de ponta de Minas Gerais.

ANISTIA E RETORNO DOS EXILADOS


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No final dos anos setenta, o grande ideólogo-teorizador do regime
era o general Golbery do Couto e Silva, pensante maior do processo de
abertura proposto. Ele sabia necessário criar mecanismos para conter a
pressão social que punha em risco um elaborado plano de institucionalização.
O presidente falava em abertura lenta e gradual, mas o ‘penseur’
da estratégia era o general Golbery. Era necessária a descentralização do
poder decisório, que passaria a partilhado, evitando questões menores
assumissem proporções litigiosas. A concessão da anistia política supunha
que estados e municípios, num passe de mágica, se fundiriam com a
sociedade civil. Num sonho, integrariam um todo harmônico. Mas como
integração não se produz espontaneamente, senão por superação do
velho, criação do novo e, por fim, adaptação e entrosamento, não se uniriam,
jamais, carrascos e enforcados, girondinos e jacobinos. A bandeira
da anistia vinha sendo empunhada pela oposição desde o AI-1. O grande
ano da campanha pró-anistia foi 1978. Em outubro, o Presidente Geisel
enviou ao Congresso mensagem que se tornou na emenda constitucional
nº 11. A lei 6.683, de 28 de agosto do ano seguinte, a despeito de limitações,
avançou ao permitir o retorno dos asilados, ao restituir-lhes os direitos
políticos. Para chegar a meio termo satisfatório, exigiu inúmeras
(e cansativas) negociações, delas participando setores militares mais de
direita, os chamados da linha dura. Alterada, a Lei das Inelegibilidades
possibilitou candidaturas de anistiados que retornaram, muitos, à carreira
política. Todos os presos políticos, após consideração individual dos
casos, terminaram livres, apesar de restrições ainda mantidas. Não foram
contemplados os que se haviam envolvido na luta armada, e não puderam
reassumir funções os integrantes das forças armadas expurgados por motivos
políticos. Esses passariam a receber pagamento integral por aposentadoria,
em vez de pensões parciais. Entretanto a lei continha perdão
incondicional para os integrantes do aparato repressivo envolvidos na

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luta. Antes de promulgada, muitos já voltavam, sob vistas complacentes
dos militares no poder. Tudo, diga-se, forçado pela necessidade de acalmar
a opinião pública, sequiosa da abertura prometida, ávida de democracia.
A fadiga do poder se evidenciava no resultado sempre declinante
nas urnas. Não mais se justificava a resistência de uma minoria à anistia.
Havia que fazê-la. Para os militares, foi concessão. Na verdade, a concessão
da anistia jamais foi espontânea, e nunca os militares a admitiram
como exigida pela sociedade. Para eles, não havia o que ceder; concediam
– por suposta liberalidade. Tampouco havia o de que se redimir –
não reconheciam faltas. E como não havia culpas, não carecia penitência.
Às favas, definitivamente, atos de contrição. Se eles, militares, não ofenderam
a Deus, como pedir perdão ao vulgo? A anistia foi apresentada,
pois, como benevolência, quase caridade. Quando os exilados iniciaram
a volta, por sugestão do deputado Modesto da Silveira, do Rio, foi constituído
um grupo: a cada vez que regressasse um exilado, três deputados
iriam recebê-lo e, se ele tivesse de ir à Polícia Federal, iriam junto e se
declarariam presos também. Genival foi umas cinco ou seis vezes. Da
bancada mineira, tem a impressão de que foi o único que manteve constância,
não se recorda de outro. Isso está registrado no livro de Fernando
Coelho, “Direita Volver, o Golpe de 1964 em Pernambuco”:
“Aprovada a anistia, para receber os exilados que voltavam ao Brasil,
a direção nacional do MDB constituiu uma comissão especial integrada
pelos senadores Pedro Simon, Marcos Freire e Henrique Santillo
e pelos deputados federais Aldo Fagundes, Fernando Coelho, Fernando
Lyra, Délio dos Santos, Airton Soares, Genival Tourinho e Elquisson
Soares. Anistiado, Miguel Arraes retornou ao País no dia 15 de setembro
de 1979, desembarcando com sua família no Rio de Janeiro. Uma multidão
estava à sua espera, ocupando quase todas as dependências do aeroporto
do Galeão – considerado área militar. Após entendimentos com o
comandante da Base Aérea, fomos autorizados – três parlamentares – a
entrar no avião, para recebê-lo. Ele estava visivelmente emocionado. Em
poucas palavras, pusemos o ex-governador a par dos fatos mais recentes
ligados à sua volta e das providências adotadas para sua recepção no Recife”.

RETORNO DO ENCONTRO TRABALHISTA EM LISBOA


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Na sessão de seis de abril de 79, Genival alertou para dificuldades
criadas ao retorno de certos brasileiros, apelando fosse mantida a promessa
de se não criarem embaraços a eles. E deu boas-vindas aos trabalhistas
Darcy Ribeiro e Doutel de Andrade:
– Quero também, presidente, com muita alegria, assinalar a presença
nesta Casa, neste momento, do ex-deputado Doutel de Andrade, último
líder do Partido Trabalhista Brasileiro, partido a que me filiava anteriormente
a 1964 (palmas). E consignar também, com maior ou tanta alegria,
as conferências ontem pronunciadas pelo ex-ministro Darcy Ribeiro e
pelo ex-deputado Doutel de Andrade para uma seleta assistência de jornalistas
e estudantes, quando se voltou a falar no povão brasileiro. Novamente
tivemos oportunidade de perceber, com nitidez, a fixação
filosófica e política do significado de povão; povão que não vem tendo
assento nem voz nos altos postos onde se tratam dos destinos deste País.
A minha homenagem, portanto, aos dois grandes conferencistas, Darcy
Ribeiro e Doutel de Andrade.
(DCN, 07/abr/1979, pág. 1931)
Grande admirador de Darcy, Genival fala do sarcasmo do amigo:
– Quando Darcy voltou do exílio, virou um caso sério, havia sempre
um elemento em frente a seu apartamento. E Darcy, sempre muito
irreverente, muito gozador, dizia: “nós estamos saindo para o jantar. Não
quer ir com a gente? Aí você relata, inclusive, a conversa que estou tendo
aqui com o deputado, a conversa que vou ter com outras pessoas”. E o
rapaz, que ficava desconcertado: “Oh, Dr. Darcy, estou aqui apenas cumprindo
meu dever de ofício, o senhor sabe”.
Promulgando a Lei de Anistia, aliviaram o peso da canga trocandoo
pelo jugo bem mais leve da cangalha, mas foi além do que esperava

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uma oposição sufocada. Não contávamos com tamanha “liberalidade”.
Recordo-me de que tomei conhecimento da lei pelo teletipo da sede da
Organização Internacional Pró Anistia, em Roma. Quando saí de Lisboa
e me despedi de Brizola e de outros, ouvi deles: “nessa primeira fase,
não vamos ser beneficiados, terá que haver uma outra fase, e vocês têm
que trabalhar nisso”. Foi o que disseram o Arraes, por sinal em Paris, e
vários outros. Estavam enganados. Nós, deputados da oposição, não ousávamos
esperar que a anistia, ao incluir todo mundo, fosse tão abrangente.
Há que creditar isso ao governo. Figueiredo havia dito a
jornalistas: “lugar de brasileiro é no Brasil”. Com todas as cavalices, o
homem foi além de todas as expectativas do momento. Sou daqueles que
entendem que a lei, só a partir daí, permitiu verdadeiramente no Brasil
outro pacto, de perdão para ambos os lados. Daí porque não vejo com
nenhuma simpatia esta história de querer prender e penalizar aqueles que
nos agrediram, como muitos defendem. Digo mais, não com amargura,
sentimento que não tenho, mas com tristeza e vergonha: me recordo perfeitamente
de que, enquanto lutava pela anistia, e fui um dos primeiros
a fazê-lo aqui em Minas e também na Câmara Federal, nunca ouvi falar
nesse tal de Vanucchi (Paulo de Tarso Vanucchi, Ministro Especial de
Direitos Humanos), hoje figura importantíssima do governo federal.
Chego à mesma e irrespondível dúvida da Sandra Starling quando questionou:
“enquanto eu estava lutando duramente contra a ditadura na Câmara
e aqui em Belo Horizonte, onde estava a Dilma Rousseff?”. Do
meu ponto de vista, o que houve no Brasil com a anistia foi a repetição
do Pacto de Moncloa. Vou além, também pergunto: enquanto eu era processado,
e se mudava o regimento interno do Supremo Tribunal Federal
para que eu fosse condenado, enquanto eu era metralhado a 300 metros
do aeroporto de Brasília, enquanto era espancado, onde é que estava esse
Vanucchi? Dele nunca ouvi falar antes em minha existência senão agora,
no governo Lula.
Tínhamos voltado de um encontro trabalhista com Brizola em Portugal,
quando fomos para essa reunião em Roma. De Minas, lembro-me
bem, só estávamos a Helena Grecco e eu. O texto, bem mais generoso
do que pensávamos, surpreendeu. Foi bastante além do que imaginávamos
naquela hora. Recordo-me igualmente de haver, de pronto, telefonado
ao Brizola e ao Arraes, este na Argélia, cumprimentando-os
efusivamente. Mas a volta dos exilados não foi fácil, não apenas para os
que estavam no exterior. Foi difícil também para os que haviam ficado.
No Congresso Internacional pela Anistia, em 79, tivemos reuniões com

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uns poucos exilados brasileiros em Roma, depois reuniões em Paris, onde
os banidos eram em número maior. O pessoal da Tunísia se juntou a nós
na capital francesa. Foi uma reunião tão tumultuada que falei para o pessoal:
“estou percebendo que vocês estão indóceis querendo voltar para o
País, o que é natural. Quero alertar que, quando voltarem, não posem de
heróis, senão a vaca vai para o brejo outra vez. Heróis somos nós, que
ficamos lá e aguentamos o pau. Vocês saíram”.
Depois que regressaram, eu percebia que, volta e meia, havia confronto
entre os que tinham ido para o exílio e os que ficamos. Pensávamos:
por que Fernando Henrique Cardoso era herói? Herói de quê? Era
rico, tinha condições e se autoexilou. Na história política do governo de
64, não houve exílio de ninguém. Houve autoexílio. Foi para o exterior
quem pode ir, por comodidade. Agora, outros aguentaram firmes o regime
militar aqui dentro, foram presos aqui, aqui permaneceram. Entendo
bem que alguns poderiam até ser assassinados, não saíssem
prontamente. Brizola era um deles. Darcy, outro. O mesmo ocorria com
o Bambirra e o Carlos Olavo da Cunha Pereira, entre os mineiros. O
Darcy, quando quis distribuir armas para os estudantes da Universidade
Nacional de Brasília, foi contestado pelo Nicolau Fico, um general que
quis impedir, e o Darcy partiu para os tapas. O José Maria Rabelo, também,
era outro. Se ficasse, morria. E a razão era a raiva, ódio mesmo,
que um grupelho das forças armadas tinha de determinadas pessoas que
peitavam os militares. O caso é que muita gente tinha consciência de que
perderia espaço político se os cassados voltassem. Essa gente pretendia
uma anistia mais restrita, exatamente para não abrir esse espaço. Gente
da oposição, da Arena, do MDB também. Quero destacar que duas voltas
extremamente temidas pelos políticos foram as do Brizola e do Arraes.
Brizola era liderança, todos sabiam que chegaria ocupando um espaço
político muito grande, o que realmente aconteceu. O Brizola só não voltou
a governar o Rio Grande do Sul porque não quis, preferiu o desafio
do Rio de Janeiro. Com quase oitenta anos, perto da morte, se resolvesse
ser candidato ao governo de seu estado, poderia até perder, mas ainda
daria trabalho. Apesar da idade, dias antes de falecer, voltaria a ser convidado
por lideranças partidárias para concorrer à prefeitura do Rio. E o
Arraes, com a idade de oitenta anos, foi governador de Pernambuco pela
terceira vez.

A REFORMA PARTIDÁRIA


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O regime militar pretendeu desmontar o esquema varguista, do topo
à base da pirâmide, liquidando o trabalhismo e o nacionalismo, valendose
da repressão e perseguição aos líderes políticos, trabalhistas e sindicais.
A Arena e o MDB foram criados para organizar as forças de apoio
e de oposição com total vigilância e controle do próprio governo. Chegou
o momento, porém, em que havia que revogar o bipartidarismo, ou todas
as lideranças que, no exílio, resistiram, fatalmente engrossariam o MDB.
A Arena perderia a maioria residual que ainda tinha. Foi como o MDB
venceu em 74. Já no final dos anos setenta, debalde esforços do governo,
reunia fortes correntes de oposição e expressava ideias visceralmente
contrárias ao regime. Assim, em 79, o poder identificou como séria
ameaça seu crescimento, de todo indesejável. Estudos feitos pelo SNI e
outros órgãos governamentais mostravam que, apesar das novas regras,
a oposição conseguiria o controle do Congresso Nacional, das assembleias
estaduais e até mesmo de boa parte das prefeituras municipais nas
eleições seguintes. Urgia, admitiu-o o próprio Golbery, desagregar a oposição
e controlar a organização dos partidos. Enquanto o governo tinha
maioria no Congresso, garantida pelos senadores biônicos, havia que, rapidamente,
remodelar o sistema partidário. Então, a Nova Lei Orgânica
dos Partidos, de vinte de dezembro de 79, que modificou por completo
o quadro partidário brasileiro, foi aprovada no Congresso, sob fortes protestos
da oposição. Foram extintos MDB e Arena. Os membros desta formaram
imediatamente o PDS, beneficiados por poderem se livrar da
nefasta imagem de partido governista, e nefasta é bem o termo. Já o
MDB, mantendo-se na oposição ostensiva, obedeceu à lei, que mandava
constasse a palavra “partido” em quaisquer novas siglas. Não querendo
perder o patrimônio do nome, cabedal acumulado, limitou-se ardilosamente
a, antes da sigla, colocar a palavra partido, constituindo o PMDB.
No intuito de afastar dos anseios populares setores mais radicais, a
nova lei tentou impedir a criação do PT, de cunho populista, sob alegação

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de que era vedado formar partidos “com base em credos religiosos ou
sentimentos de raça ou classe”. Em vão. O Partido dos Trabalhadores foi
eficaz na própria defesa, argumentando que incluía membros de setores
sociais distintos. A lei orgânica acrescentava, ainda com o claro objetivo
de complicar, uma série de complexos dispositivos a serem cumpridos
por qualquer associação que pretendesse se registrar partido político.
Assim, a nova legislação causou transtornos à oposição, mas propiciou
amplos debates sobre a divisão em partidos menores. Fatalmente, uma
fragmentação pura e simples, redundaria em enfraquecimento eleitoral,
beneficiando o PDS. A oposição percebeu a utilidade de formar pequenos
partidos. Só eles seriam capazes de organizar politicamente os diversos
setores populares. A tática de unir em pequenas agremiações as mesmas
tendências teve êxito. Certo é que, em outubro de 80, todos os partidos
já haviam atendido às exigências para obtenção do registro provisório.
– Acho que a reforma partidária pode ter sido uma estratégia dos
militares, um meio de o governo dizer que estava promovendo reformas.
Na realidade não passavam de concessão, simples concessão, nunca de
resposta às lutas e anseios populares. Ele, governo, mantinha assim a sociedade
sob controle. A diretriz de Geisel era conduzir o processo, que
ele batizara de “distensão lenta e gradual”, e nisto era influenciado pelo
Golbery, muito apropriadamente chamado de bruxo. Como único deputado
de Minas, participei do Congresso Trabalhista de Lisboa, a convite
do Brizola. Eu era casado com a Esther, fomos juntos. O projeto do Brizola
era exatamente fazer o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) renascer
das cinzas. Segundo ele, ninguém brigava pela UDN (União Democrática
Nacional), ninguém brigava pelo PSD (Partido Social Democrata). A
briga, recôndita, latente, era para devolução de status de partido político
ao PTB. Na verdade, o golpe militar veio muito mais sobre nós, do PTB,
do que sobre os outros todos. Não foi só em cima do Jango, deu muito
mais em cima do Brizola, do Partido Trabalhista, que se expressava em
uma nova e incomodativa linguagem naquele contexto. Falávamos de
planos, metas, participação da mulher e do negro na política, já então
nos preocupávamos com a criança. Era o vislumbre de um Brasil mais
justo, igualitário, equitativo. Isto incomodava, e muito. Fomos ao congresso,
extremamente bem organizado em grupos de trabalho, na sede
do Partido Socialista Português. A Revolução do Cravo Vermelho deixara
marcas, seus ideais ainda inspiravam o povo. Chegamos no dia treze de
junho, dia de Santo Antônio, o padroeiro de Portugal. Fomos àquelas festinhas
na Mouraria, bairro antigo que recorda muito os mouros, donde o

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nome. Os portugueses estavam lá, a tomar vinho, fritar sardinhas, todos
cantando. Foi quando um colega nosso, na empolgação daquele clima,
subiu na mesa, escancarou os braços e berrou, a plenos pulmões: “Viva
o Partido Comunista Brasileiro, viva!!!”.
Era uma euforia total, extravasada porque o gesto era impensável
no Brasil. Tinha de estar fora do País para dar vivas ao PCB, o Partidão.
Integrei o Grupo de Trabalho da Reforma Agrária e chegamos a
várias conclusões, documentadas aliás na Carta de Lisboa, datada, se
não me engano, de 28 ou 29 de junho de 79. Voltamos do encontro
trabalhista, eu já comprometido com o Brizola para tentar reestruturar
o PTB em Minas. E começamos com muita fibra, lutando arduamente.
Encontramos extremas dificuldades, não só pelo momento, também
porque, na realidade, o mineiro nunca foi muito com a cartilha do
Brizola. Paulistas e mineiros nunca se afinaram muito com suas
ideias, menos ainda com seu jeito caudilhesco. Ele não chegou à presidência,
acho, por não ter base em Minas e em São Paulo. Quando
disputou a eleição com Collor, tivesse ido para o segundo turno, a
história seria diferente. Ele seria presidente, não passaríamos pelo
que passamos na onda Collor. Partimos incontinenti para a fundação
do PTB. O Leonel Brizola voltou do exílio tão logo publicada a Lei
da Anistia, mas não compareci ao desembarque. A 12 de setembro de
79, fui à tribuna prestar esclarecimentos sobre nota publicada no Jornal
do Brasil, especulando possíveis deserções do chamado bloco trabalhista
da Câmara, e que apontava meu nome como um dos que
recuavam. Tudo por não haver comparecido ao desembarque de Brizola.
Revidei em poucas palavras.
– Enfaticamente, declaro: primeiro, que o meu não comparecimento
ao desembarque do companheiro Leonel Brizola se deveu, exclusivamente,
a motivos financeiros. Alcançado com as despesas que fiz na recente
viagem a Lisboa para participar do Congresso Trabalhista,
faltaram-me recursos para ir à Foz do Iguaçu e ao Rio Grande do Sul. E
mineiro só gasta quando pode!!!
Segundo, porque sou, por formação intelectual, trabalhista mesmo,
dentro da concepção de Bordeaux: posicionamento político vocacionado,
exclusivamente, à defesa dos interesses do trabalho.
Terceiro, porque aceito a liderança de Brizola como a única capaz
de formar nacionalmente as hostes trabalhistas.
Quarto, porque quem receia Brizola é a mesma gente que tem medo
de Virgínia Woolf. Por último, como na piada da pólvora que faltou para

412
o disparo do canhão, não dei qualquer declaração ao jornal O Globo. E
o que se disser em sentido contrário às colocações que ora faço, será desinformação.
Ou mentira mesmo.
(DCN, 13/set/1979, págs. 9396-98).
Empenhado na tarefa de reorganizar o PTB, Genival tratou, desde
logo, de agendar visita de Brizola a Belo Horizonte. Mal imaginava que
a vinda seria marco inicial de uma série de acontecimentos, culminando
na denúncia da chamada Operação Cristal, com subsequente condenação
dele próprio como incurso na Lei de Segurança Nacional, precocemente
provocando o encerramento de sua já brilhante carreira política. Na campanha
pela sigla, o grupo liderado por Brizola lançou publicação com
um manifesto e o programa do partido. Na capa, os nomes e fotografias
de Brizola e Genival. Na contracapa, Getúlio Vargas e João Goulart.
Ainda na publicação, a celebre Carta Testamento de Getúlio, como a deixar
bem claro que eram aqueles os seus verdadeiros seguidores. Com a
crise do milagre econômico, iniciava-se a abertura democrática, lenta e
gradual. Tendo à frente Ivete Vargas, o PTB é reorganizado, tudo indica
que por influência direta do general Golbery. Apesar dos esforços, o
grupo perdeu a sigla para a sobrinha-neta de Getúlio.
– O PTB caiu nas mãos da Ivete Vargas. Não sei se é verdade, mas
era voz corrente, e comentado na imprensa, que a Ivete era manipulada
pelo Golbery. Assim, ele teria interferido, fazendo com que a sigla do
PTB não fosse entregue ao grupo do Brizola mas, sim, ao grupo dela. A
alegação jurídica era de que teria de haver representação mínima de uma
terça parte dos estados brasileiros. Nós tínhamos representação, até em
muito mais que sete ou oito, mas não tivemos o cuidado de fazer com
que as relações de inscritos chegassem à justiça eleitoral. Então, com
essa artimanha legal, o Tribunal Superior Eleitoral, por decisão unânime,
entregou o PTB à Ivete. Recordo-me até de que assisti à reunião do TSE
ao lado de um amigo, o já falecido deputado Getúlio Dias, figura interessantíssima
do “grupo dos autênticos”, muito falastrão, muito exuberante
de gestos e de palavras. Tinha barba messiânica, preta, e cofiava
aquela barba e soltava os ‘tchê’ e os ‘bah’, como todo bom gaúcho de
fronteira. A gente se sentia envolvido por aquele clima pampeiro que o
Getúlio Dias traduzia nas coisas. Sentindo no ar que íamos perder a sigla,
fui botando a mão na perna dele, dizendo: “contenha-se, não apronte,
Getúlio, contenha-se”. Inutilmente. Ele se levantou e gritou, a plenos
pulmões: “O judiciário brasileiro é a cloaca da república”. Assim mesmo,

413
desse jeito. Foi um negócio. Pararam a reunião, quiseram retirá-lo. Ele
se recusou, era um parlamentar. Houve um profundo constrangimento,
um tremendo mal-estar. Em seguida, perderíamos a legenda. Numa reunião
que tive depois no Rio com Brizola e altos expoentes do futuro PDT
(Partido Democrata Trabalhista) – eu era tido como advogado conhecedor
da legislação eleitoral e era quem estava encaminhando as coisas
junto ao TSE –, o Brizola me consultou, junto com os elementos de vanguarda
do PTB, Darcy Ribeiro e Neiva Moreira. E eu disse: “olha, considero
totalmente inútil todo e qualquer recurso tendente a mudar a
decisão do TSE, depois que, na palavra do Getúlio Dias, o poder judiciário
se transformou em cloaca do poder executivo”. A legenda foi para
a Ivete.

O PDT EM MINAS


414
O Brizola, então, convocou uma reunião dos mais ligados a ele,
no Palácio Tiradentes, para discutirmos tomada de rumos. Muito a
seu estilo, tudo se expôs, nada se discutiu. Ele já chegou colocando
o PDT – Partido Democrático Trabalhista –, veio com tudo pronto.
Falou, acatamos, fim. Voltei para Belo Horizonte encarregado de
substituir a sigla, escrevendo PDT onde encontrasse PTB. Fácil como
parecesse, encontrei dificuldades de toda natureza. A grande realidade
é que Brizola nunca teve aceitação do eleitor mineiro. Tampouco
teve facilidades políticas, simpatia ou sequer aceitação do
eleitorado paulista. Não fosse isso, repito, teria chegado à presidência.
No primeiro turno daquela eleição de Collor, perdeu para o Lula
por diferença de trezentos ou quatrocentos mil votos. Tivesse tido
tais votos em Minas e São Paulo, teria ido para o segundo turno e a
história se contaria de modo completamente diverso. Não seria um
Fernandinho “hermoso” que iria derrubá-lo num debate público, com
toda a experiência dele. O Collor poderia arrumar cinquenta filhos
naturais e cem adulterinos que não derrubaria o Brizola do cavalo,
como derrubou o Lula, com uma filha natural. Todo mundo que assistiu
àquele programa viu que o Lula se descontrolou completamente
a partir da revelação de que a Lurian seria filha dele, de seu
romance com aquela enfermeira. Sobre Brizola, lamento profundamente
que não tenha chegado à presidência, foi sempre seu grande
sonho. Na presidência, não tenho dúvida, ele “quebraria o castanho”.
Não deixaria continuar desse jeito. Ele “quebraria o castanho”. Em
1954, nacionalizar empresas, americanas sobretudo, era impensável.
Quando ele o fez com aquela multinacional de eletricidade no Rio
Grande do Sul (Bond & Share) ninguém entendeu. Como tamanha
ousadia? Os acionistas americanos puseram a mão na cabeça: “é loucura,
isso não existe. Como é que um estadozinho lá na fronteira,

415
como é que um governador atrevido vem e mexe em interesses americanos?”
Ele seria presidente mesmo, com todas as letras, como se
costuma enfatizar. Comandaria de fato e de direito, comandaria de
todo, sem essa de poder da Globo. Não teríamos essa história de globalização,
a coisa se teria encaminhado por outras sendas, não por
esse caminho cujas trilhas ainda nos enredam. Eu só via, dentre os
que sonhavam chegar à presidência, torno a repetir a expressão,
como capaz de “quebrar o castanho”, o engenheiro Leonel Brizola.
O Arraes não era homem para a tarefa de romper com esse continuísmo
das elites brasileiras, cada vez mais impiedosas. Várias são
as elites e muitas as impiedades. De nada aquelas abrem mão, cada
vez mais se distanciando do povo. Este, continua apenas “um detalhe”.
Na fala daquele personagem do Chico Anysio, “que se exploda”.
Com Brizola não haveria isso. Demonstração inequívoca
tivemos quando, como governador do Rio, para desespero de uma
“daminha do society” e de todas as famílias elegantes do Rio, estabeleceu
linhas diretas entre os subúrbios e as praias das dondocas e
dos “dondocos”, ditas mais bem frequentadas. Outra coisa: a polícia
estava (e está) acostumada a subir o morro, entrar, invadir casas a
patas de cavalo, bater, prender indiscriminadamente. Não no seu governo.
O preceito constitucional que diz da inviolabilidade do lar se
refere, evidentemente, a seu lar, a meu lar, ao lar do crioulo que mora
na vila. É o lar deles, tão inviolável quanto o do nobre, e ele também
acabou com isso. Então, na medida do possível, como governador,
ele “quebrou o castanho”. Quebrou no Rio Grande do Sul, no Rio de
Janeiro e, se chegasse à presidência, torno a repetir, teríamos uma
situação outra que não a que vivíamos. Em Minas, eu era o único deputado
que o PDT tinha naquela ocasião. Tentei filiar outros, mas
ninguém se dispunha. No fundo havia receio de Brizola, do nome
Brizola, da ligação com Brizola. Havia, mais que receio, quase medo,
havia mil cuidados com a vinculação ao nome. O eleitorado mineiro
não se dava bem com o homem. Acho, convictamente, que a posição
do mineiro, do eleitorado mineiro, não era propriamente contra o
PTB ou o trabalhismo, tanto que João Goulart, quando candidato a
vice-presidente derrotou, dentro de Minas, o Dr. Milton Campos, inclusive
em Ponte Nova, cidade onde nasceu o grande mineiro. E foi
exatamente em Minas que a derrota se configurou. O voto era desvinculado,
o que fortalece ainda mais minha afirmação. Quem derrotou
o Dr. Milton Campos foi o Jango, do PTB. A rejeição era, pois,

416
pela figura do Brizola, por aqueles arroubos, modo de falar, o pouco
comedimento, a afoiteza com que ia ao pote, coisas que não se coadunam
bem com o temperamento mineiro. O mineiro é mais lento,
não vai assim tão de afogadilho. Também o paulista nisso se parece
muito com o mineiro. Igualmente comedido, não vai muito sedento
à fonte. Paulista também fala: “devagar com o andor que o santo é
de barro” e, de certa maneira, age assim. Por outro lado, eu não queria
fazer um factótum de outras agremiações partidárias. Várias vezes
me foi sugerido, por exemplo, que em razão da amizade com o Renato
Azeredo, eu transformasse o PDT em factótum do MDB. Mas
eu não queria isso, queria quadros autênticos dentro do PDT, porém
não conseguia.
Antes das eleições governamentais de 82, Brizola decidiu lançar
Genival Tourinho como candidato pela legenda. A recusa, somada a outras
divergências, gerou atrito inarredável com a direção do partido, e
culminou com a saída de Genival do PDT.
– Brizola queria porque queria que eu fosse candidato ao governo
de Minas e apareceu com mania de lançar meu nome. Não aceitei. Nem
pensei em me candidatar, ele insistia em meu nome, eu não assumia. Era
ridículo. Primeiro, eu não tinha vivência ou experiência suficientes para
pleitear o governo de meu estado. Segundo, não tinha votos, minha candidatura
não tinha qualquer sustentação. Se continuasse na vida política,
poderia até algum dia vir a ser candidato, mas em circunstância diferente,
nunca batido, penalizado no Supremo Tribunal Federal por um processo
cujo julgamento resultaria de todo imprevisível. E se viesse a ser candidato
– e fosse condenado, o que faria com a candidatura? E, motivo último,
que talvez viesse primeiro no ordenamento das razões, eu entendia
que era a vez do Tancredo. Como poderia, pois, assumir a candidatura e,
mais ainda, contra alguém que sempre me liderou dentro do MDB? Eu
não podia, não tinha como esquecer quem era Tancredo Neves, não podia
peitar uma candidatura como a de Tancredo, homem com mais de setenta
anos, vinte passados na oposição e sempre almejando melhor resultado
nas urnas do que o obtido em 61, quando disputou com Magalhães Pinto
perdendo quando franco favorito, numa zebra eleitoralmente histórica,
ainda hoje de difícil entendimento, embora dez mil vezes explicada. Tancredo,
ungido por todas as forças políticas do estado, tudo indicava, compareceria
às urnas apenas para compor uma situação exigida por lei, tão
somente por formalidade legal. Tudo o apontava como o governador mais

417
votado da história política de Minas. Não o foi. Muito além do imponderável,
o que se viu foi o impensável, o simplesmente absurdo. Magalhães,
com bancada de dez ou doze deputados, se elegeu. E Tancredo
teve de esperar mais vinte e um anos. Por essas e por outras, resolvi me
desligar do PDT. Saí. O Brizola era um mandão, sempre foi, tanto que
todas as pessoas que tiveram maior proximidade política com ele e compartilhavam
suas ideias, a pouco e pouco dele se afastaram, exceto o
Darcy Ribeiro, por quem Brizola tinha respeito quase reverencial. Lembro-
me ainda de dois outros: um foi o Alceu Colares, que chegou a governador
do Rio Grande do Sul. O outro foi o José Maurício, secretário
de Minas e Energia por duas vezes. Mas, fora raros companheiros, muita
gente brigou com o Brizola que, vivo estivesse, continuaria brigão. Foi
um homem – e já manifestei isso por várias vezes – por quem tive respeito,
admiração, e cuja lembrança mantenho. Mas era um caudilho. Só
valia o julgamento dele. Um próximo rompimento seria com o governador
do Rio, o Garotinho. Brizola quis sempre mandar, determinar, não
permitia autonomia às pessoas. Queria porque queria que eu fosse candidato
ao governo de Minas, o que eu nunca poderia ser, pelas razões
que citei. Resolvi então ingressar no PP, Partido Popular, a convite de
Tancredo Neves, sua liderança maior. A decisão ouriçou os meios políticos,
já que o Partido Popular unia nada menos que os antagonistas de
61, Magalhães e Tancredo.
No dia seguinte ao da decisão ainda se comentava que, saindo do
PDT, Genival ingressaria no PT. O ‘Jornal de Montes Claros’ publicava:
“Genival deixou o PDT mas não entrou no PT. O deputado Genival
Tourinho, que vinha exercendo as funções de presidente do PDT
mineiro, não faz mais parte daquele partido. Ontem à noite, em Belo Horizonte,
com membros do diretório, ele entregou sua renúncia ao jornalista
José Maria Rabelo, secretário do partido, alegando que o PDT em
Minas se transformou ‘num sonho de uma noite de verão’, apesar de admitir
que o partido do Leonel Brizola ‘foi o melhor projeto político’ que
conheceu nessa fase de reestruturação partidária no País. No ato de sua
renúncia, o Genival Tourinho comunicou também que ficará sem opção
partidária, mas há dias, em Montes Claros, ele admitiu filiar-se ao PT”
(Jornal de Montes Claros, 10/out/81).
– Decorridos não mais que dez dias de articulações, optei pelo PP.
O sensacionalismo em volta da decisão ficou por conta da imprensa e do

418
próprio partido, que marcou reunião extraordinária da comissão executiva
para receber a filiação. Na véspera da reunião, o Correio Braziliense
publicou curta entrevista minha, afirmando que, de fato, quando deixei
o PDT, estava propenso a ingressar no PT, mas terminei optando pelo PP
por força das pressões que recebi das minhas bases eleitorais.
A filiação ocorreu na sala da liderança do partido, Câmara dos Deputados,
presentes diversas autoridades, destacando-se o presidente de
honra do PP, José de Magalhães Pinto, e o presidente, senador Tancredo
de Almeida Neves. Nos dias que se seguiram, os jornais foram pródigos
em registrar o crescimento do PP e o significado da adesão, certamente
a ser seguida por outros políticos mineiros.
Nem faltaram galhofas, como a do Jornal de Brasília:
“Mineiros com mineiros – o deputado Genival Tourinho – mais
nova aquisição do Partido Popular, mostrou-se insuperável na malícia
mineira nos últimos dias, quando comemorava com amigos e correligionários
sua admissão na nova legenda. A duas perguntas, ele deu
respostas modelares. Disse, na primeira vez, que pretendia ver Tancredo
Neves no governo do estado. Na segunda afirmou querer ver
Magalhães Pinto no governo de Minas. Ou seja, Minas está onde sempre
esteve”.
(Jornal de Brasília, 23/out/81).
No mesmo dia 23, no Painel, da Folha de S.Paulo:
“(...) o adiamento da filiação de Tourinho no PP teria sido provocado
por pequenos desencontros no seu grupo. E mais, para Tourinho, a sigla
do PP não vingou em Minas. Deveria ser PT – Partido do Tancredo –
como todos os mineiros estão dizendo”.
– Quando deixei o PDT, meu primeiro ímpeto foi ir para o PT. O
Tancredo é que me advertiu: “você não vai conseguir conviver com esse
pessoal nem vinte e quatro horas”. Comecei a verificar que realmente
era aquilo mesmo. Então ele me chamou e fui para o Partido Popular.
Ele me dizia: “se você tiver atuação política pelos pontos mais à esquerda
do programa do PP, vai se sentir muito bem”. Na realidade, o PP me deixava
de uma certa maneira incomodado, era um partido muito bem comportado,
muito certinho. Mas logo em seguida, quando, com a fusão,
virou PMDB, não tive mais problemas. Mas não foi apenas nos meios
políticos que a ida causou espanto. Minha família, afora Esther, também
não reagiu bem à decisão. Ela foi quem ponderou: “Genival, você tem

419
seus amigos de toda a vida. Desde o princípio da política, o Tancredo.
Você tem que ficar com os seus amigos, como vai para um partido onde
ninguém o conhece?”.
Brizola, mais que qualquer outro, reagiu muito mal à saída. Em visita
a Belo Horizonte, não poupou críticas, com ampla repercussão, digase
de passagem. Por exemplo, o Estado de Minas, em manchete: “Brizola
diz que Genival não faz falta”. De acordo com a nota, o presidente do
PDT afirmara: “ele foi para nós uma grande decepção. Lamentamos a
sua atitude, nem tanto por nós, mas pelos padrões de vida pública brasileira.
Estamos vivendo uma época em que o povo está julgando os políticos,
e (julgando também) estes que estão se mostrando inseguros,
eleitoreiros, que passam de um partido para outro como quem troca de
camisa. Todos eles vão ser drasticamente julgados. No caso do deputado
Genival Tourinho, estou convencido de que a sua atitude ainda será motivo
de muitos comentários em Minas e no País. Por outro lado, há muito
tempo que verificávamos que ele não assimilava as nossas ideias e o programa
do partido. Creio que ele sai praticamente só. Diretório não pôde
levar porque não organizou nenhum, nem mesmo o de sua terra natal,
Montes Claros”.
(Estado de Minas , 08/nov/81).
Quando Genival comentou: “atribuíram-me haver dito que o PDT
era inviável, e que nem Juruna com toda a sua tribo seria capaz de formar
o partido em Minas”, Brizola retrucou: “eticamente, Genival não poderia
proceder como procedeu. O desmerecimento de Juruna é prova de sua
imaturidade”.
(Diário de Minas, 08/nov/81).
– Por essa época, sendo processado pelo Supremo Tribunal Federal,
não me deixei intimidar. Na sessão de 20 de agosto de 81, na tribuna,
protestei contra o indiciamento, pela Lei de Segurança Nacional, de algumas
lideranças montes-clarenses, os diretores de O Jornal do Norte e
de O Jornal de Montes Claros, jornalistas Américo Martins Filho, Oswaldo
Alves Antunes, Benedito Said e Waldyr Sena Batista, responsáveis
pela publicação de artigos considerados subversivos. De outra feita, aproveitei
a denúncia que o líder o PMDB de Alagoas, deputado José Costa,
fazia da verdadeira guerra travada contra as oposições naquele estado, e
ainda para criticar o Ministério Público brasileiro e o sistema judiciário

420

em geral. Externei a opinião de que tudo o que vinha acontecendo no
Brasil nos tempos últimos se devia à ausência de Ministério Público. Na
ocasião, afirmei, iria desafiar o procurador-geral da república para demonstrar
a existência ou não de Ministério Público no País. (...) Não há
sequer arremedo de procuradoria neste País. A Procuradoria Geral da República
só se presta para processar deputados pela Lei de Segurança Nacional
e para processar lideranças sindicais. Em nenhum momento em
que é chamada para valer, para realmente prestigiar a instituição, faz-se
presente.
(DCN, 21/ago/81, pág. 8126)


DA CASSAÇÃO


421
Ao término de seu segundo mandato na Câmara Federal, Genival
tinha o destino político já decidido pelo STF, que lhe cassara o direito de
ser candidato. Não concorreria, pois, nos pleitos seguintes. Era chegado o
tempo da despedida. Não tinha como descrever o que lhe ia no íntimo. A
cassação feria mais a democracia que ao deputado. Paradoxalmente, menos
o deputado que o homem. Estigmatizava o cidadão que seguia sua vida,
mas não descaracterizava o parlamentar combativo que deixava a tribuna.
Era também tempo de reflexão, de meditações sobre os oito anos em que
ali estivera na luta pelos direitos de vivermos numa democracia, sequestrada
pelo golpe, usurpada pelos militares. Havia, pois, que se despedir,
com dignidade e altivez. Tinha muito a transmitir em tempo limitado. Não
podendo se permitir ser tomado pela emoção de um discurso de improviso,
cuidadosamente elaborou o esboço, subiu confiante à tribuna.
– Sr. presidente, srs. deputados. Em 1974, um próspero advogado,
detentor da segunda banca de advocacia de todo o estado de Minas Gerais
– com onze advogados trabalhando dentro de um escritório perfeitamente
estruturado, em primeira, segunda e até terceira instâncias – largava os
seus afazeres a chamado do então Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira,
para disputar um mandato de deputado federal. Confesso que estava
afastado já há seis anos da política e, tendo pregado, na Assembleia Legislativa
de Minas, em 1968, a campanha “anule seu voto”, encontravame
totalmente desvinculado da vida pública, sequer lia os noticiários
políticos, apanhado por uma verdadeira aversão ao que então chamava de
política. Mas não resisti à convocação daquele extraordinário amigo e, em
23 de julho de 1974, eu me lançava candidato a deputado federal. Com
três meses e poucos dias de campanha, tive consagradora eleição, com
mais de 50 mil votos. Deixei os meus afazeres particulares, deixei a minha
rendosa banca de advocacia e para cá me locomovi, trazendo minha famí-

422
lia, cheio do mais puro idealismo, acreditando que poderia participar do
processo de redemocratização do País. No primeiro pronunciamento feito
nesta Casa, eu dizia que o único compromisso que tinha era com a causa
de institucionalização do País e que o mandato me sensibilizava exatamente
na medida em que pudesse exercê-lo com as mesmas palavras com
que meses atrás eu sustentava a minha candidatura. Participei de tudo, sr.
presidente, srs. deputados, dei o que havia de melhor em mim aqui nesta
Casa e, em poucos momentos, na realidade, eu me senti deputado. Na curva
helicoidal da nossa vida, de profundas angústias no parlamento brasileiro,
poucos foram os momentos em que me senti parlamentar. Senti-me parlamentar
no momento em que derrubamos a impostura da reforma do Judiciário
e, pela segunda vez, no dia em que derrubamos a sublegenda para o
cargo de governador. Duas oportunidades, apenas. E, daí para a frente, apenas,
única e exclusivamente, frustrações e mais frustrações, pela inutilidade
absoluta do exercício do mandato. Foram oito anos de profundo desalento,
de profundo sofrimento por sentir a incapacidade de participação desta
Casa no processo global de condução de vida pública neste País. Sempre
entendi, sr. presidente, que a vida pública envolve riscos, e riscos grandes.
Nunca entendi a vida pública senão enfrentando-os. Sempre entendi que
exercê-la sem riscos equivale apenas a usufruir da vida pública. Dei o que
havia de melhor em mim, de mais palpitante, de mais vibrante dentro do
meu entendimento em favor da causa pública, enfrentando todos os riscos,
ameaçado a todo momento de cassação, até que veio, finalmente, o célebre
processo pela Lei de Segurança Nacional, que redundou na minha inelegibilidade.
Nesse ponto, aparteia-o o deputado Luiz Leal. Após agradecer,
Genival retoma:
– Prosseguindo, sr. presidente, num determinado momento de
minha vida, ouvindo murmúrios e conversas à socapa, nos mais variados
ambientes – dentro desta Casa, no Senado, nos tribunais de Brasília,
no foro de Belo Horizonte, nas ruas – envolvendo o nome de três militares
como estando por trás de uma operação que visaria a desestabilizar
o processo de abertura, não hesitei em fazer a denúncia
publicamente, perante toda a imprensa nacional, no sentido de que
aqueles fatos, pela sua gravidade, fossem devidamente apurados.
Genival ilustra agora o discurso, entremeia, narra situações semelhantes
em outros países. Mas, ressalta, “com desfechos diferentes, denúncias
sendo apuradas”, e nunca processamento do denunciante:

423
– Os exemplos estão aí, presidente – os exemplos do mundo e do Brasil.
Aquele que, angustiado por não suportar ser detentor de revelações e confidências
de elementos que haviam pertencido, no passado, à comunidade de
informações, divulga a existência daqueles fatos e pede a sua apuração, revela-
os até mesmo para provocar uma descompressão nos meios mais responsáveis,
nos meios da inteligência nacional, é processado e, finalmente,
condenado pela Lei de Segurança Nacional, tendo que carregar pela vida afora
– ele que tem extrema sensibilidade para isto, exatamente por ser advogado
– o labéu da condenação pela mais alta corte de seu País. Mas de nada me arrependo.
Se tivesse que voltar ao dia 12 de junho de 1979, faria as mesmas
denúncias, porque nasciam elas da imposição do meu temperamento, da imposição
do meu caráter e da certeza de que não se faz vida pública única e
exclusivamente pensando em deter mandatos. Faz-se vida pública com lances
de audácia, com lances de grandeza, situando-se, realmente, fora daquela esfera
pequena da vida privada, mas com os grandes lances da vida pública.
Noutro aparte, o deputado Mendonça Neto destaca que Genival
fora, talvez, a principal vítima da abertura do regime, reverberando injusta
a condenação e congratulando-se com ele. Genival retorna:
– Minha condenação, realmente, resultou de uma construção altamente
teratológica. A teratologia de minha condenação está tipificada
no fato de eu estar aqui, condenado pela Lei de Segurança Nacional e,
como tal, elemento indigesto ao meio social em que vivo. Estou de
posse do microfone podendo delinquir. Estou sob regime de sursis que
não pedi, que me foi imposto, que me fizeram engolir goela abaixo.
Entrei junto ao Supremo com embargo de declaração, fazendo uma
pungente pergunta: posso recusar o sursis? O Supremo negou-se a receber
os meus embargos. A teratologia está demonstrada. O elemento
indigesto ao meio social, o elemento perigoso, o homem que há de carregar
pela vida afora o labéu da condenação pela mais alta corte do seu
País, pode delinquir aqui, agora: é um parlamentar, está em pleno exercício
de seu mandato. Não me permitiram sequer tentar ser o que sou.
A coisa é tão teratológica que recebi, há questão de quinze dias, do organismo
internacional de juristas, o International Jourists, com sede
em Genebra, um pedido no sentido de que mandasse uma cópia completa
do meu processo, porque não entendem, definitivamente, como
pode resultar uma construção tão teratológica quanto essa que foi operada
no meu caso. Meus companheiros: deixei apenas de ser deputado,
mas nunca de ser político; tiram do homem a exterioridade, mas não

424
tiram aquilo que ele tem ínsito na sua alma, impregnado no seu espírito,
enterrado dentro do seu coração. Participei da campanha em Minas nos
lances mais perigosos. Dei tudo de mim na campanha de Minas. Ajudei
a todos os meus companheiros, enfrentando tudo, certo de que de mim
só tirariam a condição de político pela morte. Fora deste apelo, não há
nenhuma possibilidade de tirarem de mim a condição de político. E
voltarei a disputar mandato eletivo. Tenho absoluta certeza de que voltarei
às ruas e a esta tribuna. Tenho absoluta certeza de que, daqui a
quatro anos, com modificação da legislação, que vem por aí, novamente
aqui estarei. Novamente farei as colocações que achar que devo fazer,
pelo meu entendimento, pela minha consciência, sem o pequeno medo,
nem com o grande medo, que é o medo da covardia. Esse grande medo
nunca tive. Já tive os pequenos medos que todos os homens têm, mas
o grande medo, graças a Deus, este ainda não penetrou no meu espírito. (...)
Antes de sair desta Casa, gostaria de fazer um veemente apelo a
todos aqueles que vão permanecer na próxima legislatura. Atentem os
novos deputados e aqueles que têm o seu mandato ora renovado para a
grande responsabilidade de modificação da legislação eleitoral deste
País. Se a legislação eleitoral não for modificada, a classe média brasileira,
a partir da próxima legislatura, já não terá qualquer representação
aqui. Só serão eleitos aqueles que tiverem atrás de si sindicatos
fortes, corporações, organizações populares perfeitamente disciplinadas
e com bases ideológicas. Este grupo chamo de oito ou oitenta, é o grupo
dos plutocratas. O que se gastou nestas eleições, tanto de parte do PSD
como do PMDB, foi algo de alucinante. Se na próxima legislatura não
houver uma profunda conscientização disso, veremos então esta Casa,
muito proximamente, dividida entre plutocratas, aqueles que se elegem
por força do dinheiro, e uma pequena minoria, eleita por sindicatos,
corporações e organizações populares. E o fato é mais grave porque
nós sabemos bem que é a classe média quem segura a humanidade.
Com seus preconceitos, com as suas coisinhas, com as suas pequenas
desconfianças, ela serve na realidade de colchão de ar entre as elites
do poder econômico e as classes mais marginalizadas por esse poder.
Ai do país que não tiver a sua classe média muito bem representada
dentro de um congresso! Atentem, os que ficam e os que vierem, para
esse dado, profundamente constrangedor, mas que foi observado por
todos nós, independentemente de qualquer sigla, porque abuso econômico
houve também no meu partido, o PMDB. (...) Mas, sr. presidente,
srs. deputados, finalizando, quero deixar consignado nos anais desta

425
Casa que à vida pública dei tudo de mim, dela nada tirei. Cheguei aqui
com quarenta anos, homem de fortuna; daqui me retiro aos quase cinquenta
anos para iniciar novamente a minha profissão, para voltar ao
meu escritório de advocacia, pobre, porque tudo que tinha, praticamente
perdi ao longo dos oito anos em que, com paixão, me entreguei
ao serviço desta Casa. (...) Antes de terminar, sr. presidente e prezados
colegas, faço um juramento, em nome da minha honra, da minha dignidade
e pela felicidade dos meus filhos e dos netos que ainda um dia
terei: eu voltarei a esta Casa. (palmas prolongadas).
Com sério prejuízo para a democracia que ressurgia, ainda trôpega,
Genival não voltou. Foi o último dos banidos pela ditadura, outra
lacuna no Congresso. Que falta imensa faz, que falta enorme a gente
sente. Diversos colegas fizeram questão de homenagear o orador, prestando-
lhe, ademais, solidariedade, não aquela de praxe, mas solidariedade
verdadeira, sentida, dorida. Em tom até mesmo de ternura,
externaram ainda o sentimento da Casa, Audálio Dantas, salientando e
fazendo registrar o absurdo da cassação por um “regime falido, corrupto”,
e Sílvio Abreu Júnior, que destacou estar o Congresso entristecido
com a ausência iminente do colega e amigo, mas ressalvando que
Minas estaria engrandecida com o retorno. Textualmente: “V. Exa. naturalmente,
com absoluta e inegável certeza, leva também a estima,
mas principalmente a reverência dos seus colegas que aqui ficam e que
encontraram na pessoa de V. Exa. a figura de um bravo, de um destemido,
sobretudo de um dinâmico realizador, que muito já contribuiu e
que ainda muito haverá de fazer para plena redemocratização deste País
e a retomada final e derradeira de seu estado de direito, anseio maior,
desejo inestimável do povo brasileiro”.
A senadora Júnia Marise aderiu às homenagens e o deputado João
Cunha acrescentou: “Honra-me inserir este pequeno aparte no conjunto
do discurso de V. Exa. Estou com as mãos estendidas, no aguardo do retorno
de V. Exa. Mantenho tudo o de que disponho ainda, como deputado
nesta Casa, à disposição do seu trabalho. Que Deus o ajude e acompanhe”.
(DCN, 03/dez/82, págs. 9301/05)
Na prevalência da força, democracia não existe. Genival não retornou
à Câmara, não pode cumprir o juramento, mas não deixou a política.
Voltando a advogar, voltou a seu jeito de ser. Retornou de bem com a
vida, afirma. Caso raro, largar a vida pública não deixou sequelas.

TANCREDO NEVES E A SUCESSÃO MINEIRA


426
Desde o início dos conchavos para as eleições de 82, e ainda nos
atropelos do próprio processo, Genival tinha sua posição política claramente
definida, não aceitando, conforme desejo de Brizola, disputar o
governo.
Manifestava-se abertamente pela candidatura Tancredo Neves.
Era ainda presidente do PDT em Minas quando, a onze de agosto de
81, o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, publicava:
“Tourinho em Minas Gerais – O deputado Genival Tourinho, presidente
do PDT mineiro, foi indicado candidato a governador do estado
por seu partido, na pré-convenção regional realizada domingo, em Belo
Horizonte, com a presença do ex-governador Leonel Brizola. Os trezentos
participantes da reunião também indicaram o nome do antropólogo
Darcy Ribeiro, ex-ministro de Jango, para concorrer ao Senado
mineiro pela mesma sigla. Logo após sua indicação, Genival Tourinho
reconhecia, entretanto, a dificuldade de ser viabilizada sua candidatura
e, por isso, a situou “apenas como um instrumento de luta em prol da
vitória das oposições ao governo de Minas”. O parlamentar defende
um candidato único da oposição às eleições para governador do estado
em 82, e adiantou sua preferência. “No que depender da minha influência,
o candidato das oposições em Minas será o senador Tancredo
Neves, das melhores figuras da política nacional”, declarou Genival
Tourinho. Ao defender o candidato único para a oposição em Minas, o
dirigente do PDT em Minas alinhou as três condições para que seu partido
apoiasse o nome escolhido: nosso candidato a governador precisa
ser leal, ter senso de cumprimento do dever e aceitar um programa popular
de governo”.
Quatro dias depois, o jornal Estado de Minas publicava longa matéria
sobre as articulações políticas em torno de candidaturas ao governo
de Minas, afirmando em letras garrafais:
Tancredo Neves e a
sucessão mineira

427
“Tourinho dá preferência a Tancredo.” Genival, entretanto,
mesmo lançado por seu partido para disputa do cargo, continuava afirmando
que o mais importante naquele momento era reforçar o PDT
como agremiação capaz de conciliar e agregar as oposições em torno
de um candidato único. O seu era Tancredo. Muito também por isso,
em seguida, Genival deixou o PDT. Ingressou no PP, que logo se fundiu
com o PMDB. O processo de junção tem, aliás, fatos interessantíssimos,
dignos muitos do folclore político, como a conversa entre
Tancredo e Magalhães Pinto. Precursora e consolidante da aliança
entre os dois, resultou na fusão com o PMDB.
– Certa vez agendamos nos reunir para discutir a fusão. Sugeri
que o encontro fosse na casa do Renato Azeredo, que tinha feito uma
cirurgia para colocação de pontes de safena. Seria menos incômodo
para ele, não teria de sair. Poderia receber em casa, à vontade, de pijama,
como quisesse. A sugestão foi acatada. Quando chegamos, o
Tancredo abriu a reunião, dizendo:
“Nós aqui não temos muito o que conversar, porque a coisa já
está mais ou menos definida, trata-se da fusão do PP com o PMDB,
mais ainda por se tratar de encontro de velhos amigos, não é doutor
Magalhães?”. Magalhães não perdoou, respondendo:
“Ué, Tancredo, se a reunião é de tão velhos amigos assim, para
que o ‘doutor’ Magalhães?” .
E aí tivemos de segurar a gargalhada. Era, mais uma vez, o Magalhães
ferrando o Tancredo. Aliás, todas as oportunidades que tinha
de dar uma ferradinha no Tancredo, aproveitava. Reciprocamente,
sempre que podia, Tancredo fazia o mesmo. Por exemplo, apesar de
chamarem o Magalhães de “Dr. Magalhães”, ninguém sabia informar
ao certo o porquê do tratamento, a razão do título. Afinal, ele era formado
em quê? Um jornalista gozador resolveu tirar a dúvida com o
Tancredo, este sim, advogado. Desta vez, ele não deixou passar: “Não
sei em que ele é formado, mas posso garantir uma coisa: nunca conheci
um colega de turma do Magalhães Pinto”.
Por sinal, o Tancredo costumeiramente “fazia a minha cabeça”,
mas de certa feita foi minha vez, fui eu quem fez a dele, no exato sentido
de que ele deveria patrocinar a candidatura do Hélio (Garcia) ao
governo do estado, mas pela Arena. Tancredo achou a ideia interessante,
telefonou ao Hélio dizendo: “olha, Genival está indo aí amanhã
conversar com você. Deixe recado dizendo onde pode ser encontrado”.

428
A propósito dessa minha ideia de lançarem o Hélio para ir à convenção
com o apoio do Magalhães e do Tancredo, levantando portanto
os brios tanto do pessoal do PSD antigo quanto os do pessoal da UDN,
devo esclarecer que o Hélio, naquela ocasião era, nos meios políticos,
extremamente simpático, muitíssimo benquisto. Como presidente da
Caixa Econômica Estadual, atendia aos pleitos dos deputados, recebia-
os muito bem, tratava-os melhor ainda, estava num momento de
ganhos muito grandes na política, era realmente muito estimado por
todos os que militavam na área. Então ele, com o impacto forte da presença
daquelas duas maiores lideranças da política mineira na ocasião,
conclamando-as a se rebelarem numa convenção, certamente não resultaria
interventor o Francelino. A propósito, o Tancredo me contou
haver procurado o primeiro dos três governadores nomeados, o Rondon
Pacheco, da UDN, com quem se dava muito bem, pois foram colegas
na Faculdade de Direito da UMG, clamando: “Rondon, o que é
que podemos, o que vamos fazer para impedir a escolha do Francelino?”.
E o Rondon respondeu: “Olha, você tem muito mais veia política
do que eu, é homem de oposição, veja lá como é que podemos
impedir que isso aconteça”.
Pouco depois, ainda nessa ocasião, o Tancredo voltou a procurar
o Rondon que, parece, não mais se dispôs a participar de uma rebeldia
tão grande. Acabou não acontecendo, embora estivesse tudo acertado
com o Magalhães. Se o Hélio tivesse topado ir para a convenção, teria
ido com o apoio do Tancredo e do Magalhães Pinto. Então, para que
fique mais claro, caso o Hélio, que tinha apoio de muita gente na
Arena, se resolvesse, daria uma de Paulo Maluf e faríamos um quadro
de rebeldia à mineira, igual ao que houve em São Paulo. Explico:
Maluf não era o candidato ao governo paulista desejado pela presidência,
o desejado era um amigo do Figueiredo, cujo nome me falta.
Estava tudo acertado para que, dentro do esquema dos militares, o
nome desse cidadão fosse ungido e ele, automaticamente, feito governador
de São Paulo. Mas o Maluf, na única tacada certa que deu em
política, se rebelou contra aquilo, entrou pela convenção aos berros,
discursando, dizendo que não aceitava aquele negócio, que era candidato,
e pedindo votos aos convencionais. Houve até um momento, dirse-
ia tragicômico, em que a luz se apagou e tentaram furtar a urna,
porque acharam que o Maluf ia mesmo ser escolhido. Quando a luz
voltou, lá estava ele, pantomímico, segurando a urna com unhas e dentes,
o que ocasionou uma reviravolta tremenda, e o Figueiredo teve

429
que engolir a candidatura do Maluf, que soube virar a mesa. Esse mérito
dessa figurinha desastrada e desastrosa da política brasileira, esse
galardão ninguém lhe pode tirar. Ele foi o primeiro a se rebelar contra
as indicações militares para os governos dos estados, e acabou escolhido
governador de São Paulo.
Retomo: fui então à residência do Hélio, e sua esposa, Margarida,
me disse que ele estava na casa do José Monteiro de Castro, onde o
encontrei. Já tomado por uns uísques, sequer admitiu conversa. E me
dizia, com aquela expressão que é muito dele: “Ôh menino, já estou
muito velho para fazer novos amigos”. Fiquei meio sem entender, mas
o fato é que contei ao Magalhães que o Tancredo tinha topado comparecer
à convenção, num golpe bastante ousado de marketing. E o Magalhães,
irônico: “Será que o Golbery deixaria ele ir?”. Quando voltei
a falar com o Tancredo e contei a gozação, ele explodiu: “Filho da
puta esse Magalhães. Não conheço, nunca conheci o Golbery, esse Magalhães
é um filho da puta”, o que repetiu ainda umas duas vezes. Era
uma rivalidade velha entre os dois e, como disse, sempre que podiam,
um ferrava o outro.
Genival já se sabia inelegível. Por mera desobrigação de consciência,
até mesmo por pressão de amigos ainda tentou, junto ao TRE
de Minas, registrar a candidatura a deputado federal, pelo PMDB. A
26 de agosto, conforme esperado, veio a decisão negativa. Não mais
se dispôs a recorrer. Tinha a certeza de que naquela hora prejudicaria
o partido, com eventuais votos sendo anulados, assim determinava a
lei eleitoral. Convicto de que apenas deixava de ser candidato, lançouse
de corpo e alma na campanha de Tancredo. Em setembro fez publicar
carta com este fecho:
“Pragmaticamente, na trilha do voto útil, como inteiro político,
conclamo àqueles que pretendiam votar em mim a optarem por um
dos três candidatos a deputado federal que estou apoiando, Leopoldo
Bessone, Dario Tavares ou Renato Azeredo, qualquer um deles, não
valendo, como preferência, a ordem dos nomes. Para a Assembleia Legislativa,
com a mesma observação quanto à precedência, gostaria de
ver eleitos Pedro Narciso, José da Conceição Santos, Pereira Filho,
José Godoi Moreira, Lacyr Andrade e Albênzio Dias (líder metalúrgico).
Meu candidato ao Senado, sem implicar em desestima ou desapreço
a seu concorrente, é Simão da Cunha Pereira. Quanto ao
governo, sabem todos, este extraordinário mineiro, o ‘cabeça fria’ dos
momentos de dificuldade na vida da nação, o eterno Tancredo Neves

430
e seu companheiro Hélio Garcia. Na certeza de novamente voltar a
disputar eleições, estarei em todos os palanques oposicionistas, nas
praças, nas ruas, no interior e na capital, lutando pela ‘virada’ que restabelecerá
a dignidade de Minas Gerais, assim voltando ao comando
político da nacionalidade.
Belo Horizonte, setembro de 1982. (a) Genival Tourinho – deputado
federal.”
– A propósito de minha opção pessoal pelo nome do Simão da
Cunha Pereira para o Senado, devo esclarecer que, desde os tempos
de estudante, sempre fui muito amigo dele. Tivemos escritórios no
mesmo prédio (Edifício Dantés) e nos frequentávamos praticamente
todos os dias. Aliás, quando cheguei a Brasília, ele cassado, eu era
muito assíduo à sua casa, almoçava, jantava, era muito amigo dele e
de sua senhora. De ambos tenho muita saudade, os dois já se foram.
Quando o Simão contraiu o câncer do qual viria a falecer, entendeu
que ficaria livre do mal se se tratasse nos Estados Unidos. Todavia não
tinha recursos para custear ida e acompanhamento médico naquele
país. Então entrei com parte dos recursos, conseguindo o restante com
o Tancredo e o Renato Azeredo, numa pequena ajuda, bastante para
comprar trinta mil dólares. Entreguei-os ao Simão, que afinal foi para
os EEUU preocupado em ver se lá conteria sua doença. Voltou me trazendo
sacos de remédio contra cigarros para ver se eu, com a ajuda
deles, conseguiria parar de fumar. Simão tinha uma preocupação muito
grande com minha saúde. Naquela ocasião eu chegava a fumar oitenta
cigarros por dia. Mas só dois ou três anos depois, deixei definitivamente
esse vício assassino, o que me assegurou talvez chegar até os,
agora, 79 anos de vida. No ritmo em que eu estava vivendo, fumando
não conseguiria. Na campanha, Simão e eu dormíamos sempre no
mesmo quarto. Quando as dores o acometiam, ele me pedia para aplicar
as doses de injeções prescritas, o que eu fazia com muita habilidade,
haja vista que comecei minha vida de trabalho aos dezesseis
anos, em uma farmácia que meu pai tinha em sociedade com um sobrinho,
na então Burarama, hoje Capitão Enéas. O Simão foi sempre
muito meu amigo. Para completar, devo dizer que ele foi candidato ao
Senado a pedido, por insistência mesmo do Tancredo, porque um
grupo, do qual eu fazia parte, foi ao Tancredo e ponderamos: “olha, o
Itamar exigiu que o nome dele passasse pela convenção, caso contrário
não será candidato”. Diz que seria antidemocrático se valer dessa lei

431
que garante automaticamente a candidatura daquele que exerce o
cargo. O Itamar não precisaria passar pela convenção. No entanto,
temperamental e reconhecidamente cheio de idiossincrasias, disse que
só seria candidato se a convenção lhe homologasse o nome. Então entendemos
que deveria sair uma sublegenda com outro candidato, que
seria o Simão da Cunha porque, no meio do caminho o Itamar, imprevisível
como era em muitas coisas, poderia nos deixar sozinhos, sem
um nome para disputar o Senado. Vamos lançar o Simão.
Tancredo deu o sinal verde e saímos para trabalhar, o que fizemos
dando duro em torno do nome do Simão. Isso muito valorizou a escolha do
Itamar, porque ele foi o nome ungido, embora por pequena margem de votos.
O Itamar, quero ressaltar ainda uma vez, sempre foi extremamente
correto para comigo, bom amigo também, foi um defensor do
restabelecimento de minha elegibilidade na sessão mais longa do Senado,
quando o Tancredo às quase seis horas da manhã, sei lá, me acordou
e me tirou da cama para contar, todo vibrante, que salvara meu
mandato. Bom, falta acrescentar que quando o Tancredo foi eleito, eu
o procurei para dizer:
– Tancredo, a primeira coisa que você tem que fazer quando assumir
esse governo, é indicar o Simão para o Tribunal de Contas, porque
ele está numa situação financeira difícil. Sou muito amigo dele,
sabemos que tem poucos meses de vida. Pelo menos fazer com que
deixe a família bem, quando nada isso você pode fazer por ele.
Ao que Tancredo respondeu: “mas não tem vaga”.
E eu:
– Como é que não tem? O Francelino indicou para ela o deputado
Ruy da Costa Val. O governador indica, o governador retira. Você vai
tomar posse amanhã, essa mensagem não foi votada. Amanhã mesmo
você retira o nome desse deputado e, em substituição, indica o Simão.
Aí é que a ficha caiu. Tancredo deu um tapa na testa, dizendo:
“Oh, rapaz, e eu que não tinha pensado nisso. É isso mesmo. O
governador manda, o governador retira”.
Então, no dia seguinte à posse, lembrei-lhe o prometido. Ele mandou
imediatamente fazer o ofício, trocando os nomes. Acrescento que
a família Costa Val era e é bastante ligada a mim, porque toda muito
do meio forense em Belo Horizonte. Então eu soube que eles estavam
atribuindo ao Renato Azeredo (que viria a ser chefe da Casa Civil) o
fato de ter feito retirar o nome do candidato parente deles, o que os
levou a entender que era o Renato o responsável. Foi quando procurei

432
o irmão do Ruy, João Braz da Costa Val, na época presidente do Tribunal
Regional Eleitoral, e falei:
– João, olha, o pessoal da sua família está denegrindo aí o Renato,
dizendo que foi ele que convenceu o Tancredo a substituir o nome de
seu irmão pelo do Simão da Cunha Pereira. Eu nunca fui de jogar
pedra e esconder a mão. Quem fez a cabeça do Tancredo para isso fui
eu. E vou te explicar por quê. Porque nós, do PMDB, também temos
os nossos cancerosos. Conheço a situação de seu irmão, ele foi indicado,
está com câncer. Mas nós também temos os nossos cancerosos.
Então você há de compreender...
E ele respondeu: – Olha Genival, os filhos do Ruy realmente acreditavam
que era o Renato, porém eu entendo perfeitamente.
Voltando à derrota de Tancredo em 1961, de certa maneira, uma
dissidência de parte do PTB decidiu o pleito estadual daquela ocasião,
entre ele, uma vitória tida como mais que certa, e Magalhães Pinto.
Os discordantes passaram a apoiar Magalhães como resultado de acontecimentos
ocorridos em Valadares (Governador Valadares), onde o
Presidente Juscelino se posicionou inteiramente a favor de Clóvis Salgado,
médico que foi seu vice-governador. O candidato a vice-governador
pelo PTB era San Thiago Dantas, mas Juscelino, no comício de
Valadares, colocou-se aberta e francamente em favor da candidatura
de Clóvis Salgado, por uma questão de gratidão. Aborreceu a muita
gente do PTB. Por tal razão, muitos de nós, do partido, naquela ocasião
votamos em Magalhães Pinto e fizemos campanha para ele. Eu me recordo
de que o meu voto foi para Jânio, Jango, Magalhães e San
Thiago Dantas. Votei também no Darcy Bessone, candidato ao Senado
naquela ocasião. Foi uma reviravolta na política mineira. O PR e o
PTB apoiavam Tancredo. Mas uma ala do PTB entrou em dissidência,
pois o partido não recebia de Tancredo e Juscelino o mesmo tratamento
dispensado ao PR. Essa a razão. Ao mesmo tempo, no PSD, ocorreu a
dissidência de que se originou a candidatura Ribeiro Pena. Então, nas
eleições para o governo do estado, em 61, contra todas as expectativas,
Magalhães se elegeu. Surpreendentemente, como surpreendente foi
meu engajamento em sua campanha. Despropósito total, um militante
do PTB fazendo campanha para candidato da UDN. Na realidade, milhares
o fizeram, em decorrência, principalmente, do comício em Governador
Valadares. Em 61 não votei no Tancredo. Tinha razões. Ele
era secretário da Fazenda e eu era advogado do estado que, naquela

433
ocasião, cobrava o IVC (Imposto de Vendas e Consignações) inclusive
sobre a parcela paga de imposto de renda. Isso constituía típica bitributação.
Os comerciantes entravam com ações de consignação de pagamento,
ganhavam todas, e o estado perdia porque sua posição era
absurda. Quem veio consertar o desarranjo foi o Darcy Bessone,
quando assumiu a então chamada secretaria das Finanças. Fui eu até
quem o provocou, dizendo: “Darcy, a vida inteira nós combatemos
esse negócio, a fiscalização continua multando. O estado está perdendo
todas as ações e vai continuar perdendo”. Então, por decreto,
ele acabou com a bitributação.
Mas o Tancredo, quando era candidato, havia pedido uma reunião
dos advogados do estado. O Dr. Lauro Fontoura era o advogado-
geral na época – o governador era Bias Fortes – e convocou
todos os colegas para ouvir a explanação do Tancredo a respeito.
Nós todos lá assentados, ele começou nos espinafrando, como se
fôssemos eternos perdedores de causas, e aquilo me incomodou. Enquanto
ele espinafrava, eu me levantei, ostensivamente tirei o emblema
de sua campanha, que carregava no peito, botei no bolso e
saí da reunião. Anos depois o Tancredo me dizia: “você sempre foi
atrevido. Lembro como se fosse hoje, seus colegas ficaram até o
final, você se retirou e ainda tirou da lapela o dístico de minha campanha”.
Respondi:
– Você foi lá sem qualquer razão, foi para nos esculhambar, nos
chamar de ignorantes. Eu vou lá receber esculhambação injusta? Ainda
que fosse justa, eu não receberia.
“Então perdi um cabo eleitoral?”
– Perdeu um, não. Daquele pessoal que ficou lá e recebeu aquela
esculhambação, quase ninguém votou em você, que perdeu a eleição
por causa desse fato e de outros, como no comício de Valadares. Eu
mesmo fui fazer campanha para o Magalhães e, claro, votei nele para
governador.
Naquele tempo os candidatos eram autônomos, sendo do PTB o
candidato a vice-governador, o San Thiago Dantas. Fui um dos articuladores
do famoso acordo de Governador Valadares, em que as lideranças
todas se comprometeram a votar no San Tiago e em
Magalhães Pinto. Tancredo perdeu feio em Valadares e em toda aquela
região, resultado dessa articulação do PTB. Fui um dos que se desen-

434
tenderam com Tancredo. Depois, seria seu colega de bancada, admirador
incondicional e amigo. Como mudam as coisas. A política é
mesmo como nuvens, com formas diferentes a cada momento. Essa
frase, repito, é de Antônio Carlos Andrada, e não de Magalhães Pinto,
conforme se propala e acredita.
Por ocasião da campanha, Genival recebeu convite de Magalhães,
a ele endereçado e assim redigido:
“Meu caro e jovem amigo: Sou-lhe muito grato pela visita que
você, por especial recomendação do nosso grande líder e particular
amigo Alberto Deodato, me fez em Belo Horizonte, onde teve a oportunidade
de expor seu pensamento sobre a situação em Montes Claros,
no que demonstrou segurança, descortino e elevação de vistas. Devendo
eu, proximamente, ir àquela cidade norte-mineira para fazer
uma palestra na Associação Comercial, lembrei-me de convidá-lo, no
propósito de contar com sua companhia na viagem e na estrada, o que
me dará imensa satisfação. A visita encontra-se, em princípio, fixada
para o dia 20 próximo e, a menos que fato novo e superveniente possa
alterar as disposições já tomadas, deverá realizar-se nessa data. Fico,
pois, aguardando a sua resposta e aquiescência, a fim de tomar as providências
que me cabem pela iniciativa do convite. Esteja certo de que
muito me alegrará sua concordância e honrará a solidariedade de sua
presença. Receba meu cordial abraço. (a) – José de Magalhães Pinto”.
Genival foi com ele a Montes Claros e falou no comício. Não
contente, viajou, pediu votos, fez articulações, principalmente no Vale
do Rio Doce, em favor dele e de Darcy Bessone, candidato ao Senado.
Ficou uns trinta ou quarenta dias integrado à campanha. No PSD,
Alkmim e Ribeiro Pena dissentiram, para apoiar Magalhães. Tancredo
foi derrotado sobretudo devido a essas dissensões.
– Foi uma história interessante a da derrota do Tancredo naquela
ocasião. Ele era apoiado pelo Bias Fortes, que fazia tudo o que o ele
queria. A bancada da UDN, partido de Magalhães, tinha doze deputados.
Quanto a Tancredo, era apoiado pelos dez deputados do PR, pelos
dez do PTB e pelos trinta e um do PSD. Dos deputados que a Assembleia
tinha naquela época, Magalhães tinha apenas os referidos doze
a apoiá-lo. Tancredo tinha os demais e o apoio do PSD, um partido
extremamente forte, com diretórios em todas as cidades mineiras. E
foi derrotado, não fragorosamente, foram menos de cem mil votos de
diferença. Mas foi um baque, um candidato com tanto apoio perder.

435
Quando surgiu a candidatura Magalhães, os udenistas a tinham como
uma candidatura apenas para manter o ‘panache’ (em sentido figurado:
brio, brilho, exibicionismo) do partido. Não acreditavam em sua viabilidade.
Começaram a acreditar na candidatura, quando houve a dissidência
aberta por Alkmim e Ribeiro Pena. Depois veio outra
dissidência, a do PTB. Aí a coisa engrossou. Foram inusitadas, para
dizer o mínimo, as alianças feitas naquela eleição. Tradicionalmente,
nunca se coligaram UDN e PTB. Mas foi o PTB que teve um relacionamento
“adulterino” com a UDN naquele pleito. Boa parte do partido
votou com Magalhães, mas não se tem notícia, na história política brasileira,
de união nos moldes PTB/UDN, de todo espúria. Não dava casamento,
não havia como consorciar petebistas e udenistas. Os
objetivos eram díspares demais, verdadeiramente antagônicos.
O próprio Darcy Bessone – e jamais escondi o extremo fascínio
intelectual que tinha por ele – era um homem totalmente deslocado
dentro da UDN. Tanto assim que, em 54, na primeira oportunidade
que teve, rompeu, mandando uma carta para a executiva, dizendo que
a pequenez da UDN era tão grande que o partido não se interessava
pelo fato social, pela dinâmica social. Estava aferrada àqueles princípios
que nasceram do combate a Getúlio como ditador e, dali em
diante, não havia evoluído. No combate à ditadura, a UDN se uniu a
tudo a que se podia unir. O Partidão, o Partido Socialista Brasileiro
inclusive... Todos esses segmentos participaram da fundação da UDN,
que nascia bastarda, não realmente como partido político, mas como
frente imensa de oposições.
Após se desligar – a carta foi muito bonita –, Darcy tentou inicialmente
se filiar ao PTB, mas encontrou uma resistência muito
grande por parte do San Tiago Dantas. Ciúmes cerebrinos, eram dois
gigantes da inteligência. Ademais, muito vaidosos. San Tiago percebeu
que, se Darcy entrasse para o partido, iria ameaçar sua liderança intelectual.
Com aquela oposição, Darcy acabou encontrando resistências,
não conseguiu seu intento. Mas permaneci a seu lado, sempre insistindo
aliás com o Camilo Nogueira da Gama para dissuadir o professor
San Thiago dessa oposição ao nome de Darcy. Na realidade, repito,
San Thiago vetava o ingresso de Darcy no PTB por temer concorrência
intelectual. Quem nunca se moldou aos cânones udenistas, mas permaneceu
no partido até a morte, embora com atitudes que chocavam
os correligionários, foi o Dr. Gabriel Passos. Ele era muito mais nacionalista
do que qualquer outro na ocasião, e era admirador do Dr.

436
Getúlio. Havia sido procurador-geral da república no primeiro governo
Vargas e era um grande líder da mocidade. Ainda de peso foi o Fabrício
Soares, que também acabou por se desfiliar da UDN. Lembro que
foi também na política mineira da ocasião que nasceu o voto “Jan-
Jan”. Os candidatos da UDN eram: Jânio para presidente e o Dr. Milton
Campos para vice. Mas podia-se votar em candidatos de partidos
diferentes, não existia a vinculação. Foi quando se criou a dobradinha
Jânio/João Goulart, o Jango, do PTB. Daí a dupla “Jan-Jan” – Jânio-
Jango. De novo, altera-se todo o futuro de uma nação. Não haveria
crise e nem golpe militar se fosse eleito o ex-governador mineiro,
nome altamente respeitado em todas as esferas, políticas ou fora delas.
O resto é para bola de cristal. Das boas.
Com relação ao Tancredo, aproveito para uma observação: ele
ficou muito desgastado, muito sentido com a derrota de 1961 para o
Magalhães e teve oportunidade de me dizer que ela ocorreu exatamente
em consequência de gravíssimos erros políticos cometidos por
ele próprio. Tivemos muitas e muitas conversas, longas todas, a respeito
desses escorregões políticos cometidos, inclusive o daquele famoso
comício em Governador Valadares, em que ele ignorou
inteiramente o apoio que lhe prestava o PTB mineiro, cuidando apenas
de exaltar o nome do Dr. Clóvis Salgado e se esquecendo de que o
PTB, com o inesquecível professor San Thiago Dantas candidato a
vice-governador, também estava presente. Foi, aliás, naquele comício
que nasceram as primeiras articulações pela chapa Jan-Jan. Numa dessas
confidências, Tancredo me contou que, dada ocasião, durante a
campanha, deu um chá de espera de quase duas horas no então presidente
do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, deixando-o sem a atenção
devida. Fatos assim ocorreram naquela ocasião e mostram que
realmente ele não estava numa boa hora política. A realidade é que ele
teve ocasião de, comigo, lamentar muito esses erros, tanto quanto o
fez com o Leopoldo Bessone, várias vezes com o Sílvio Abreu, poucas
com os deputados mais novos do MDB, comentários desnecessários
para os mais velhos que vivenciamos aquelas falhas. Quando do episódio
de Governador Valadares, por exemplo, eu estava no comício
em que o Dr. San Thiago foi completamente ignorado, tanto no discurso
do Tancredo quanto no do próprio Presidente JK, também presente.
Como resultado da derrota, Tancredo ficou muito sensibilizado,
muito sentido, passando a evitar Belo Horizonte. Suas visitas escassearam,
seu eixo de ação ficou entre Brasília, Rio de Janeiro e São

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João Del Rey, durante o período em que foi vice-presidente do MDB
mineiro, então presidido pelo senador Camilo Nogueira da Gama.
Com isso foi perdendo seus contatos com muita gente da política mineira,
não só do PSD como elementos também do antigo PTB, com os
quais ele tinha muita afinidade, em decorrência de ter sido grande
amigo e ministro de Getúlio. Na realidade ele vinha pouco aqui.
Quando perdeu as eleições para Magalhães Pinto, ficou muito traumatizado,
não era para menos, porque a maior coligação de forças políticas
de Minas, foi aquela a seu favor, em 61. Muito machucado, só
vinha a Belo Horizonte quando havia uma reunião da executiva do
partido, uma reunião importante, um comício, um negócio qualquer,
porque, fora daí, vinha muito pouco à capital mineira. Com isso, começou
a ficar desatualizado, principalmente das coisas visuais. Via o
fulano, sabia que era o fulano, mas não se lembrava do nome. Então,
muitas e muitas vezes eu andava com ele e alertava: “fulano vem aí,
sicrano...”, repetindo o que antes já tinha feito com Juscelino. Lembro
um episódio:
Augusto Cunha Neto foi uma grande liderança política no Sul de
Minas. Foi assassinado. Levou doze tiros, mas não morreu na hora.
Levaram-no, com onze balas no corpo, para o Hospital Felício Roxo,
em BH. Fiquei sabendo que estava lá para morrer, os médicos tentando
de tudo. Passei no apartamento do Tancredo, no edifício Niemeyer, na
Praça da Liberdade, chamei-o: “atiraram no Augusto Cunha Neto, chegaram
com ele aqui agora, e ele está no Felício Roxo, vamos fazer
uma visita a ele e à família”. Aí Tancredo se aprontou rapidamente,
descemos de carro e chegamos lá. No quarto andar do hospital há uma
sala de espera imensa, muitas cadeiras, todo um mobiliário. Quando a
porta do elevador se abriu, estavam umas quarenta ou mais pessoas,
gente da maior expressão política no Sul de Minas. Todos ali, porque
a liderança do Cunha Neto era muito grande naquela região. Ele foi
alvejado em Cataguazes, cidade importante da zona da mata. O sujeito
deu seis tiros, parou, recarregou a arma e completou. Estava cercado
de cinquenta ou sessenta pessoas, e ninguém interferiu. Foi um negócio
que me escandalizou, porque tenho absoluta certeza de que se estivesse
lá, no momento em que ele parou para recarregar a arma, eu
teria me atracado com ele. Era o mínimo que se poderia fazer. Mas o
pessoal foi tomado de um pavor tão grande que viu, impassível e horrorizado,
os tiros acertarem no Cunha, velho e querido amigo de quem
nunca me esqueci, e que foi presidente da União Nacional dos Estu-

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dantes. Tão logo a porta se abriu, senti o Tancredo, quase em pânico,
me apertando fortemente o braço e dizendo: “não estou conhecendo
ninguém”. Imediatamente fiz o seguinte: fui na frente, o primeiro que
vi, falei: “fulano, olha o Tancredo aqui”, dando claramente a deixa.
Então, quando chamava a atenção do fulano, para o Tancredo automaticamente
cantava os nomes, levantava a bola, então ele chutava com
o pé direito, o esquerdo, ora cabeceava, ficou completamente a cavaleiro
na situação, mas se eu não tivesse tido o expediente de fazer
aquilo, seria um vexame para ele esquecer nomes e, porventura, fisionomias.
Esse negócio de dizer que é político, que tem uma memória
privilegiada, é balela das grandes, não tem isso, tem é muito truque.
Cada um tem seu modo, essa é a verdade. Eu, por exemplo, me lembro
das pessoas – e as identifico – digamos que em função da geografia,
muitas vezes pela localização. Se encontro um fulano que eu sei que
mora no interior, lá em uma fazenda em Manga ou em Januária, eu sei
quem é ele. Se me encontrar com ele na Afonso Pena, passo batido.
Então, na cabeça, algumas memórias privilegiadas guardam conhecimento
de até uns poucos milhares de pessoas. Dizer que conhece Deus
e o mundo é “saque”.