segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A LEI ORGÂNICA DA MAGISTRATURA NACIONAL

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Tornou-se, pois, flagrantemente necessário ampliar o projeto de distensão,
sem entrar em choque com a “linha dura”, o que exigiria alterações
no Judiciário. Dentre outras, criar um conselho de magistratura, com
poderes para disciplinar juízes e transferir o julgamento de policiais militares,
dos tribunais civis para os tribunais militares. Estabelecidas pela
emenda constitucional nº 7, as mudanças encontraram forte resistência
na OAB, mas a oposição sozinha não conseguiria rejeitá-las. Assim, o
MDB foi pressionado a tão somente introduzir pequenas modificações.
A 30 de março de 77, o projeto de reforma judiciária, em sessão conjunta
do Senado e da Câmara, conforme exigido para alterações na Constituição,
chegou a plenário. Como não houve maioria de dois terços, o pacote
foi rejeitado, ensejando publicação de mais um ato institucional. Com
efeito, dois dias depois o Presidente Geisel fechou o Congresso.
– O pretexto para o “pacote de abril” foi a questão da reforma do
Judiciário. Nós nos rebelamos contra aquela reforma do jeito como estava
sendo proposta, colocada simplesmente ao arrepio de quaisquer
aprofundamentos. Recordo-me ainda de um discurso veemente que Tancredo
fez em reunião da bancada do MDB, dizendo que ainda não havia
chegado a hora do confronto, que estávamos arriscando tudo por uma
causa perdida: estultice pretender que a reforma se fizesse de acordo
com a nossa vontade, mas contra o desejo dos militares. Foi talvez o
primeiro discurso dele como líder do MDB, quando foi vaiado pela bancada
do partido. Logo ele, que tinha a sabedoria política e era um grande
arquiteto dela, era um sujeito que pressentia as reações do governo.
Tinha uma vivência muito grande com os militares. Provavelmente pelo
fato de haver passado grande parte da vida em São João Del Rey, onde
se localiza até hoje uma guarnição militar federal, tinha seguidos contatos
com oficiais de menor escalão, tenentes, capitães, majores. Frequentemente,
encontrava no Rio alguns deles, promovidos durante a

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carreira. Outros, veio depois a reencontrar em Brasília. Tinha um irmão,
o general Roberto, que morava em Juiz de Fora. Muito em decorrência
disso, mantinha aqueles relacionamentos, mas não fazia alarde deles.
Era de seu estilo não divulgar certas coisas. Poderia ser mal interpretado
no MDB, já que todos, eu principalmente, éramos tidos como predominante
e radicalmente antimilitaristas. Recordo-me até de que, certa vez,
acho que numa festa, o Renato Azeredo conheceu o general Danilo Venturini
e senhora, ficando com excelente impressão do casal, de quem
teria recebido convite para jantar, com a sugestão de que levasse mais
dois ou três amigos do MDB. Então o Renato me contou que convidara
o Tancredo, tinha até pensado em me convidar também, se abstendo por
causa de meu conhecido ranço contra os militares. Mas o Tancredo foi,
havendo sido recebido como velho amigo pelo general, chamado informalmente
de você, tratado pela esposa do Venturini de “nosso querido
Tancredo”, tudo na maior intimidade. É que ele já conhecia o casal há
mais de trinta anos, quando o general servira em São João Del Rey. O
fato aborreceu ao Renato profundamente, porque ele pensou que era
uma “conquista” dele na área militar. Na verdade o Renato ficou de certa
forma muito chateado pelo o fato de o Tancredo não lhe haver dito antes
que já conhecia esse pessoal. Foi quando o Tancredo esclareceu: “conheço
muito mais militares do que você possa pensar”. Isso, esse temperamento
constantemente reservado, em guarda permanente, era típico
dele.
Rebelamo-nos como disse, fomos para o confronto e o resultado foi
que, no dia seguinte, um ato decretou o recesso da Câmara, que assim
ficou quase um mês, após o que “eles” conseguiram aprovar a reforma
do judiciário como bem acharam e quiseram. Entre meus discursos parlamentares,
um há criticando aquela reforma como pretendida pelos militares.
Eu defendia o projeto da OAB e mesmo o dos órgãos da
magistratura. Em 78 deveria haver eleições diretas para governador, mas
veio o pacote de abril, decorrente da reforma do judiciário e que implicou
no brutal fechamento do Congresso, endurecimento do regime, criação
dos “biônicos” e extinção da eleição direta, que passou a indireta, eis que
era necessário preservar a fachada de democracia para a opinião internacional.
Criaram, para a eleição indireta, o Colégio Eleitoral. Em decorrência,
as capitais dos estados, as estâncias hidrominerais ou cidades
com mais de cem mil habitantes vieram a ter seus prefeitos nomeados.
Nessa ocasião, como líder, de improviso, assim me pronunciei contra a
reforma pretendida pelos militares:

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– (...) poucos projetos, submetidos à análise pública terão, como
este, merecido repúdio tão unívoco, ao tentar a disciplina e a organicidade
do poder judiciário. (...) Chega a ser teratológico, tais as situações que
podem resultar de sua eventual aplicação. (...) Por espantoso que pareça,
não consegue o projeto disfarçar sua hostilidade para com a magistratura
togada de segunda instância. (...) Cria-se um órgão punitivo, o Conselho
Nacional da Magistratura, a que se atribui o conhecimento e julgamento
de reclamações contra membros dos tribunais e a avocação de processos
disciplinares contra juízes de primeira instância, permitindo-lhes o que
era absolutamente intolerável: a revisão do mérito de decisões judiciais.
(...) Não tardará o dia em que o conselho e seus eminentes ministros, assoberbados
de uma atividade inócua, percam-se no vórtice de volumoso
arquivo de queixas, carregando o penoso fardo de processos nascidos,
quantas vezes, da vindita e do capricho e carreando, não obstante, o séquito
das provas e diligências indenegáveis a um elementar direito de
defesa. Em resumo, a sistemática do governo prenuncia sua inaplicabilidade
prática (*).
Em aparte, o deputado Magnus Guimarães:
“(...) Temos presenciado, no nosso País, a adoção de medidas discricionárias,
arbitrárias, prepotentes, inclusive de algumas fórmulas sofisticadas,
altamente requintadas, que devem partir de alguma
inteligência lúgubre. (...) Não temos condições de aprovar, nesta Casa, o
que simplesmente não presta. (...) Receba, pois, nossos reconhecimentos
ao trabalho operoso e valoroso que V. Exa. dá a esta Casa ao analisar esta
matéria”.
Genival, agradecendo, prossegue:
– (...) Acho que não é possível falar-se em tentar melhorar esse projeto.
E, para que V. Exa. tenha uma pálida ideia de como isso é impossível,
basta dizer que a mensagem original contém 138 artigos, e esta Casa
apresentou 816 emendas. Como então, emendar-se com 816 acréscimos
aquilo que contém apenas 138 artigos?
No tocante aos vencimentos dos juízes, o projeto despertou grita
geral. A magistratura de vários estados vivia em penúria material e financeira
ditada pela indiferença do executivo. Pior, ao mesmo tempo em
que equacionava mal problemas da maior gravidade, descia, noutros passos,
a um casuísmo inútil e incondizente com o nível de lei complemen-

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tar. Quanto ao porte de armas, foi de profunda infelicidade, só o permitindo
com autorização do presidente do tribunal a que estivessem os juízes
administrativamente vinculados.
– A coisa é de profundo ridículo, sr. presidente! Em Minas Gerais,
esse artigo não foi objeto apenas de indignação: foi objeto de galhofa, a
mais profunda possível. (...) disposições há que não se explicam nem se
justificam. Antes, comprometem. (...) Ora, outro tópico profundamente
ridículo é erigir direito positivo de um país, definindo lugares que podem
e não podem ser frequentados por juízes. Isso é norma ético-moral, de
comportamento. (...) Recordo-me, a propósito, de que o presidente do
Tribunal de Justiça da Bahia voltou-se indignado contra esse dispositivo,
por entender que lhe vedaria o acesso, com sua senhora, às boates de Salvador
– que dizia frequentar assiduamente –, e forma de diversão escolhida
das pessoas com quem convivia. Era, inclusive, a diversão preferida
de sua senhora. É profundamente ridículo e melancólico esse projeto.
(...) A estrutura é toda obsoleta (...) Razão tem o deputado Magnus Guimarães
quando disse que não se pode remendar esse projeto. É totalmente
impossível que um projeto de lei com 138 artigos possa suscitar a apresentação
de mais de 800 emendas.
O improviso, quase a seu final, recebe outro aparte, agora do deputado
Augusto Trein dizendo, em síntese, que só o fato de a Casa ter apresentado
800 emendas a um projeto do executivo já era um comprovante de que o
Congresso estava aperfeiçoando as leis. Em nova interrupção, Magnus
Guimarães aproveita para mostrar “o quanto é difícil o diálogo, o debate
em termos de princípios democráticos”. Critica o “nobre deputado Augusto
Trein”, solidariza-se com Genival e encerra, dirigindo-se a ele: “Tem razão
V. Exa. Aceite meus cumprimentos em nome da liderança do nosso partido”.
Após troca de apartes mútuos, o presidente Jader Barbalho assegura
a palavra ao orador, que termina suas considerações sob aplausos.
(*) Observação: há que atentar para o fato de que os conceitos expendidos
no discurso de Genival o foram num momento em que se imaginava
quisessem os militares dominar totalmente o Poder Judiciário por
meio de um conselho com poderes até mesmo de alterar decisões daquele
órgão. Hoje o quadro é outro: surgiu o Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), órgão vitalício de fiscalização dos desmandos do Judiciário ocorridos
na administração, com o aplauso de todo o País, exceto de alguns
juízes que não querem ser fiscalizados.

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