terça-feira, 3 de setembro de 2013

A SONHADA REFORMA AGRÁRIA

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– Eu, desde criança, já ouvia falar na necessidade de uma reforma
agrária. Hoje, estupefato, assombrado pelo vulto que a coisa tomou, constato
que essa reforma ainda não se viabilizou e ameaça transformar-se
em um problema tenebroso, caso se confirmem os desdobramentos que
vem tendo. O quebra-cabeça fundiário do Brasil – do qual decorre o dilema
da reforma agrária – remonta a 1530, com a criação das capitanias
hereditárias e do sistema de sesmarias, que eram grandes glebas distribuídas
pela Coroa Portuguesa a quem, pagando com um sexto da produção,
se dispusesse cultivá-las. Aí nascia o latifúndio. Em 1822, com a
Independência, agravou-se o quadro: a ocupação, a tomada e posse de
terras, com a consequente troca de donos, passaram a ser feitas sob a lei
do mais forte, em meio a grande violência. Como na lavoura praticamente
só havia escravos, os conflitos unicamente envolviam proprietários
e grileiros apoiados por bandos armados. Mais gritantemente, a partir
de 1850, quando acabou o tráfico de escravos, o problema agrário se escancarou.
O império, sob pressão dos fazendeiros, resolveu mudar o regime
de propriedade. Até então, ocupava-se a terra à força e se pedia ao
imperador um título de posse. Dali em diante, com a ameaça de os escravos,
pela ocupação, virarem proprietários rurais, o regime passou a
ser o da compra, não mais o da posse. Só nove anos depois, em 1859, o
império tentou colocar ordem no campo, editando a Lei das Terras, com
um de seus dispositivos proibindo a ocupação de terras públicas, tornando
ilegais as posses de pequenos produtores. Foi além, determinando
que a aquisição de glebas só se faria com pagamento em dinheiro, o que
reforçou o poder dos latifundiários. A instauração da república em 1889,
um ano e meio após a libertação dos escravos, tampouco ajudou a melhorar
o processo de distribuição de terras. Mas o poder político continuou
nas mãos dos latifundiários, os temidos “coronéis” do interior. Na
época, os EEUU também discutiam a propriedade da terra. Só que, lá,

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fizeram exatamente o contrário do que aqui se fez. Em vez de impedir o
acesso à terra, abriram o oeste do país a quem e para quem quisesse
ocupá-lo – só ficavam excluídos os senhores de escravos do sul. Criouse
com isso uma potência agrícola fundada numa sociedade de milhões
de proprietários, num mercado consumidor incomensuravelmente maior.
De quebra, numa cultura mais democrática. No Brasil, as desigualdades
no campo estão entre as maiores do mundo. Até a década passada, 1%
dos fazendeiros detinham metade das terras. Pouco mais de três milhões
e cem mil produtores rurais tinham menos de 3%. Atualmente, de um
lado, estão os movimentos de luta por terra; do outro, os produtores rurais
que não querem abrir mão de suas terras. Entre os dois, o governo. Quero
deixar claro que a questão de posse da terra sempre foi uma constante
no meu pensamento político-social. Entendo que a propriedade da terra
deve ser de quem nela trabalha. É conceito do “pedis ponere”, que legitima
a posse exatamente como o elemento mais importante no contexto
da propriedade. O que justifica tal conceito é a posse. A propriedade é a
posse, quem põe o pé é o posseiro, fica dono. A posse deve ser de quem
trabalha, é que tem importância mais relevante no contexto. O trabalhador
tem a posse, embora o proprietário tenha a escritura, o documento
público de compra e venda. Há proprietários que, com vigor, tornando
as terras produtivas, não devem ser incomodados. Exercem o bom exercício
da propriedade por meio da posse. Vale repetir, nos Estados Unidos
tais reformas se realizaram na segunda metade do século XIX, como
vemos consagrado nos faroestes, naquelas famosas corridas em que as
carroças chegavam, os pioneiros cravavam na terra um marco, e não sei
quantos acres em volta passavam a pertencer àquele que tinha feito a
ocupação. Já aqui no Brasil, até hoje se fala em reforma agrária, sem que
ela realmente tenha sido praticada e resolvida. Enquanto as cidades vão
se agigantando, o interior vai se apequenando, e está chegando um belo
dia em que não sei o que poderá acontecer. Já como deputado estadual,
tal estado de coisas me levou a pôr de lado as desavenças com o então
Governador Israel Pinheiro, e solicitar audiência para relatar aquele
drama. Doía-me profundamente verificar o que sofriam os posseiros das
terras abandonadas pelo grupo Matarazzo, no município de Bocaiuva,
distrito de Engenheiro Dolabela. Algo de realmente sério poderia acontecer.
Os camponeses estavam tão desesperados, que eu vira mulheres
incitando maridos a invadir propriedades privadas. Consequência de
vasta série de fatores, uma reforma agrária claramente se impunha. A politização
do caipira crescia a olhos vistos, levando a conflitos, cada vez

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mais frequentes e intensos, ora entre o proprietário de terra e o posseiro,
às vezes entre o proprietário e o meeiro, já entre o proprietário e o morador.
Como não obtive resposta, o pedido foi intermediado pelo deputado
Bonifácio Andrada, o “Andradinha”, e a audiência conseguida. O
governador me recebeu, sem entretanto se mostrar suficientemente motivado
pela questão dos posseiros daquela região. Parecia haver, de sua
parte, um certo receio, que figurava até ter algum fundamento. É que o
Banco Denasa, do qual Juscelino era na época presidente de honra, teria
feito uma proposta para adquirir aquelas terras do Grupo Matarazzo, e o
Dr. Israel não queria muita mexida com aquilo. O nome do ex-presidente,
naquela ocasião, ainda incomodava muito, e o governador estava numa
verdadeira sinuca de bico, entre a cruz e a espada, uma situação extremamente
difícil, porque a Polícia Militar de Minas Gerais não aceitava
ser comandada por membros do Exército. Na realidade, e esta é minha
visão, as polícias militares nunca aceitaram essa história de serem comandadas
por oficiais do Exército. Parece-me até que, na ocasião, a brigada
gaúcha acedeu, mas a mineira nunca acatou isso.
Quando o retrato de Juscelino foi retirado de todas as repartições
públicas de Minas, não o foi da sala do comando geral da PMMG, o que
irritou profundamente o pessoal das forças armadas. Então, na medida
em que houvesse maior aproximação entre o ex-presidente e o Dr. Israel
Pinheiro, aquilo acirraria o ódio dos militares contra este. Um fato entretanto,
faço questão de ressaltar. No trato dessa questão, não posso deixar
de lembrar um posicionamento que me intrigou e me causou mesmo
estupefação, sobretudo pela grandeza que teve, e que me foi altamente
gratificante. O Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, que eu acreditava
fosse um “gorila” (como eram popularmente chamados os militares
que tomavam o poder por golpe ou defendiam sua prática), mostrou sensibilidade
social bastante para resolver o problema das Indústrias Malvina,
inclusive apoiando integralmente o relatório feito por autoridades
policiais que diziam que os Matarazzo, mormente eles, é que eram responsáveis
por aquele estado de coisas.
A propósito dessa questão de terras no Brasil, principalmente na
Amazônia Brasileira, é bom que se ressalte o acerto e a dignidade do general
Augusto Heleno, comandante das forças militares no Norte do País.
Fiel à tradição nacionalista do Exército Brasileiro, ele tem mostrado o
perigo da situação que estamos vivendo, com o questionamento atualíssimo
da soberania nacional em relação àquela área do nosso território.

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Ora, ouvi dizer, já até mesmo li comentários em jornais e revistas, que
há muitos indígenas brasileiros que falam inglês mas não falam português.
Entendo isso de uma gravidade extraordinária, exacerbada com
esse negócio nebuloso das ONGs que lá proliferam, formadas majoritariamente
de americanos, ingleses e alemães, além de interessados menores.
Com efeito, na Amazônia se misturam inúmeras ONGs. Delas,
estima-se que existam ali operando cerca de cem mil, havendo denúncias
de que algumas se envolvem com tráfico de drogas e lavagem de dinheiro.
Ali, raras organizações internacionais de mérito reconhecido em
defesa da ecologia e dos direitos humanos se misturam com inúmeras
entidades inidôneas. Estas, com finalidade mais que incerta e até oculta,
certamente atrás das riquezas e da biodiversidade, de olho nas incomensuráveis
riquezas da região, em cujos rios estão 21% da água doce vital
ao homem. A ONU, aliás, avalia que o século XXI será marcado por graves
conflitos entre as nações, com origem em uma única causa, a escassez
de água potável. No momento constata-se o crescimento do interesse estrangeiro
pelas terras brasileiras, devido à estabilidade econômica do País
e à necessidade mundial de alimentos e biocombustíveis. Tão forte é o
questionamento internacional quanto à soberania brasileira na Amazônia,
que um jornal inglês, The Independent, chegou ao ponto de publicar:
“Uma coisa está clara. Essa parte do Brasil é muito importante para ser
deixada com os brasileiros”.
De se ver que, conforme mapeamento recém-concluído pelo Incra
(Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), 14% da Amazônia,
que equivalem aos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná
somados ou ao dobro do tamanho da Alemanha, são “de ninguém”. São
710,2 mil km2 de terras públicas, mas o órgão não sabe dizer se elas
estão nas mãos de posseiros ou de grileiros, não sabe o que está sendo
produzido ou destruído naquele patrimônio. Mais: após dez anos de esforços
para cadastrar as propriedades privadas da região, as terras que tiveram
seus papéis validados pelo Incra somam apenas 4% da Amazônia.
Em outras palavras, o estado brasileiro simplesmente ignora o que se
passa em terras da Amazônia. Os naturalistas von Humboldt, alemão, e
Goujoud Bonpland, francês, denominaram Hileia Amazônica àquela região,
ao mesmo tempo criando a ideia de uma total diferenciação com o
resto do mundo. No momento, em países como a França, por exemplo,
muito se questiona a volta da tal Hileia. Recentemente, entrou na discussão
um projeto reconhecendo aquela área como de resguardo internacional.
Ora, como bem ressaltou o ex-presidente Itamar Franco, tudo isso

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faz lembrar aquela tentativa de desnacionalização, duramente combatida
por Arthur Bernardes com seu espírito acentuadamente nacionalista, e
de tal maneira que sepultamos a ideia no nascedouro.
Genival volta a suas considerações:
– Parece que querem agora tentar sua reedição, felizmente combatida
com tenacidade por nacionalistas, dentre os quais o citado ex-presidente.
É bom que eu diga isso também porque, além de nacionalista, sou
tido como antimilitarista, o que nunca fui. Sempre respeitei as funções
do Exército Brasileiro, de nossas forças armadas, principalmente por
causa do nacionalismo, do qual elas sempre foram o porta-voz mais eloquente.
Sempre citei aliás, nas gravações que faço para este livro e nas
conversas que tenho com aqueles que ajudaram a fazê-lo, o posicionamento
notável do general Heleno, defensor intransigente do monopólio
estatal do petróleo, como também a postura do Clube Militar. Então, o
que eu sempre combati, foram os militares fascistas, autoritários, os que
deram o golpe militar de primeiro de abril, aqueles que trouxeram a tortura
e o autoritarismo que chamo de vertical, como se fosse possível um
dominó a prumo, em que o que está por cima bate no cocuruto do que
lhe está por baixo, e assim por diante. O general começa no coronel, que
vai em frente, até que a última porrada chegue no soldado. Não tendo
mais em quem bater, o soldado bate em todos nós, como aconteceu nesse
Brasil durante vinte e um anos, com essa vergonhosa ditadura. Isso eu
combati. Daí repetir, com Oswald Andrade, que prefiro “baioneta calada
a baioneta falada”. Mas deixo claro que sempre respeitei as forças armadas,
principalmente pelo seu claro espírito nacionalista, visto por muita
gente como obsoleto, como se fora possível ser antiquado o regime de
amor à pátria. E nacionalismo nada mais é do que amor à pátria, como
recentemente demonstrado pelo general Heleno, comandante da guarnição
militar da Amazônia.

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